Elogio Ao Cinema Esquecido
No dia 27 de novembro, na noite porto-alegrense, ocorreu a mostra Cinelimite na Cinemateca Capitólio. A sessão intitulada Elas no Cinema Experimental Brasileiro 1960 a 1980 fez parte de uma série de exibições de filmes restaurados pela Cinelimite, organização sem fins lucrativos, dedicada à restauração, distribuição e digitalização do cinema brasileiro. A mostra coloca em evidência um novo olhar para a tradição experimental e suas cineastas, oferecendo ao espectador uma experiência única, com filmes nunca antes vistos em uma sala de cinema.
Após uma breve apresentação do coletivo e dos filmes, foi comentado que o O Cálice do Medo (1973), de Edna Ribeiro, fora encontrado por acaso, em uma lata perdida com propagandas e jogos de basquete, na feira de antiguidades da praça XV, no Rio de Janeiro. Dei uma risada contida, pois logo ali estava ele, entre lamparinas e câmeras analógicas estragadas, o Cálice perdido: o cinema experimental brasileiro. Saí da sala de cinema remoendo algumas questões sobre aquele filme “encontrado” e a história do cinema brasileiro. O que podemos dizer do acaso de tal encontro?
Penso que, para esquecermos algo, é preciso que tenhamos conhecimento do que existiu, e me questiono o que ocorre com aqueles que não são esquecidos porque nunca foram sequer reconhecidos? Podemos pensar a história do cinema brasileiro a partir da chave do esquecimento, uma tradição subterrânea que pede por uma arqueologia de redescobrimento.
Para isso, é preciso retroceder alguns passos, olhando pelas entrelinhas as memórias de um tempo esquecido. Filmes perdidos na cinematografia brasileira, ligados ao bom e velho subdesenvolvimento terceiro-mundista, e ao próprio passado político brasileiro, são inúmeros e recorrentes. Em algum lugar, no sótão de um produtor antigo ou na casa de um parente distante, podemos encontrar uma fita em decomposição, a fita que falta para o cinema brasileiro ser revisto com outros olhos. Nesta relação, percebe-se que a tradição é feita pela memória, mas a memória histórica é contada pelos vencedores. E no contrapé do progresso residem os outros, apagados pelos livros de história.
Neste esforço do projeto Cinelimite reside um processo de rememoração da outra história da tradição cinematográfica, à qual o nome homônimo, Limite, relembra o único filme realizado em vida do escritor, poeta e cineasta Mário Peixoto. O anacronismo daprodução, realizada em 1931, é um exemplo único e isolado de um experimentalismo vanguardista mitológico que se alastrou pelas ruínas da produção brasileira. O paradoxo da obra de Peixoto é de um percurso curioso na historiografia brasileira. Perdido e reencontrado no tempo, por consequência da deterioração dos fotogramas, o filme só encontrou o olhar dos espectadores devido ao empenho de Saulo Pereira de Mello e Plínio Sussekind Rocha na restauração do filme. Em 1963, Glauber Rocha criticou[1] duramente o “Mito Limite” em seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro. Sem ao menos ter visto o filme (pois na época os negativos corriam risco de perda total), Glauber deduzia a linguagem utilizada por Mário e proclamava que, para o Cinema Novo, Limite não interessava. Estava claro qual era a tradição escolhida pelo Cinema Novo: a história de Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos. Nessa crítica direcionada, todo filme “experimental” até os anos 70 sofreu com os olhares e comentários ácidos dos cinemanovistas. Elemento curioso, pois poderíamos incluir Glauber, com o curta-metragem Pátio (1959), nesta tradição experimental, fato completamente omitido de seu livro, em 1963.
Hoje, Limite é um marco da história do cinema brasileiro, pois tornou-se visto e lembrado. No entanto, antes de ser revisto, Limite já era mito, diferentemente de alguns filmes presentes na sessão.
Entre o visto e o jamais visto, o espectador se coloca diante da tela e sua luz mágica do ecrã, e assim me coloquei naquela noite. Tratava-se de uma seleção de curtas, alguns mais conhecidos, como A entrevista (1966), de Helena Solberg (a única mulher do movimento cinemanovista), com sua cacofonia do voz over e os discursos das mulheres de classe média, durante os anos 60. Por outro lado, existiam filmes em sua primeira exibição mundial, como o citado O Cálice do medo (1973), de Edna Ribeiro.
Nos curtas, surgiram abordagens distintas, Mergulho (1980), de Lídia Albuquerque e Arnaldo Albuquerque, uma animação em queda-livre no inconsciente. Viva o Outro Mundo (1972) de Kátia Mesel, com seus pierrots disruptivos alucinados pela cidade moderna. Tele-Visões (1986), de Elisa Cabral, e as complexidades acerca da imagem e as novas mídias. Por fim, Histerias (1983), de Inês Castilho, entre desejos e neuroses do feminino. O anacronismo da sequência dos filmes, circulando entre os anos 80, 60 e 70, corroboram para a reflexão histórica em que estes se situam, interrompendo o curso normal das datas.
Existem algumas obras que nos aprisionam, e atormentam a nossa memória, fazendo necessário algum tipo de ritual para o fim do autoflagelo. Falando, primeiramente, sobre o filme de Edna Ribeiro, além de seu encontro curioso, a sua presença me marcou por certa semelhança com os filmes de Maya Deren, cineasta da vanguarda experimental americana dos anos 40. Tramas do Entardecer (1943), de Maya, está apenas a algumas imagens de distância de O Cálice do Medo, a estética superoitentista da produção estudantil brasileira evoca uma câmera em transe mayadereniana, entre corpos, espaços e fotogramas. Infelizmente, devido a minha memória, não consigo rememorar todos os fotogramas do filme. Lembro de uma praia, corredores, prédios e uma fragmentação do tempo e espaço narrativo. Não sei até que ponto estou inventando imagens e travellings, mas fico com o gostinho de ter visto algo semelhantemente curioso. Espero que em breve o Cinelimite disponibilize os filmes no YouTube para concretizar os meus desejos de memória.
Percebe-se que, nestas descrições do filme, pouco digo, ou muito digo, e aí está o caso curioso das obras anacrônicas que reaparecem em mostras e catálogos de retrospectivas. O leitor, neste caso, assim como Paulo Emílio Salles acerca do filme de Peixoto — “E Limite existe? Seriamente, não sei se vi este filme ou se tudo passa de um sonho[2]…” —, desconhece o filme e não possui nenhum lugar para vê-lo. E minha memória, pelo distanciamento da sessão, sugere um desejo de rememoração da experiência do cinema, remontando e montando novos filmes quanto mais distantes da experiência. O filme esquecido pela história torna-se esquecido pela experiência, mas nesse novo esquecimento reside um outro patamar estético: a lembrança.
Agora, relembrado, os filmes experimentais realizados por essas mulheres acentuam uma necessidade histórica da cinematográfica brasileira: é preciso assistir o cinema esquecido. E é partindo dessa necessidade que coletivos como Cinelimite e instituições como a Cinemateca Capitólio atuam no fortalecimento desse outro lugar perdido.
Escrevo esse texto como um exercício de lembrança, distante da sessão, quase duas semanas, construído a partir das inquietações aqui descritas e, influenciado, por um recente anúncio muito caro para o cinema gaúcho. Por fim, evoco (e alerto) ao leitor, a notícia da restauração do filme Vento Norte (1951), de Salomão Scliar, realizada pela Cinemateca Capitólio. O filme clássico gaúcho, o elo perdido entre neorealismo italiano, Limite pelos ventos de Torres (RS), é outro exemplo de um filme esquecido, e outra experiência que me aprisiona todos os dias, consequência da exibição em 35 mm ocorrida em 2024. Os anacronismos das águas do cinema sempre encontram alguma maneira de voltar.
[1] Relançado nos anos 70, Glauber revê o seu posicionamento acerca do filme.
[2] Em a Revisão crítica do cinema brasileiro (p.58)