Crítica | Harry e Sally: Feitos Um Para O Outro
ENTRE O ENCONTRO E A ELIPSE
Clássico das romcom, filme de Rob Reiner resiste ao acaso. Até quando dá.
Nos momentos finais de Harry e Sally, após todas as idas e vindas que acompanhamos durante o filme, Harry caminha sozinho pelas ruas de Nova York, sem rumo, na noite de véspera do ano novo. Com as luzes difusas ao fundo, de prédios, postes e árvores decoradas, ele parece imerso em um mundo suspenso. Uma cena quase deslocada do espaço, até que Harry olha para cima e, em plongée, vemos o arco da Washington Square.
O contraplano, no entanto, não é o arco, mas o flashback que se inicia quando voltamos ao rosto de Harry, agora sim, completamente destacado em meio às luzes ao fundo.
No flashback, vemos o momento onde Harry e Sally se despedem após uma desagradável viagem de carro, aos pés do mesmo monumento. O arco, figura proeminente no desenvolvimento da arte ao longo dos séculos, que conecta a Grécia Antiga com cidades tão distintas como Nova York, Paris e Porto Alegre, demarca o fim da viagem e o início da relação dos dois. O momento quando Harry encontrou Sally, portanto, é menos o que ocorreu antes - o primeiro contato na universidade e as 18h dentro do carro - e mais a ausência que se inicia a partir dali.
Harry e Sally não é, como os maiores dos romances, um filme de desencontros. Pelo contrário, é um filme exatamente sobre o ato de encontrar alguém (a viagem agendada para Nova York, o esbarrar no aeroporto, o esbarrar na biblioteca) e, diferentemente de An Affair To Remember, Comrades: Almost a Love Story e In The Mood For Love, o que separa seus personagens não é o mesmo acaso que os une, mas sim suas próprias atitudes e decisões. Para ser justo, talvez seja um filme sobre encontrar alguém na hora errada: caso Harry e Sally tivessem seguido em contato após sua primeira noite juntos, talvez o desprezo cresceria por não estarem, naquele momento de suas vidas, em sintonia.
Desenvolvido em torno de elipses, o que vemos são estados e não acontecimentos: Harry se casa na primeira elipse, Sally se torna jornalista; Harry se divorcia na segunda elipse, Sally se separa do namorado; em uma terceira elipse, os amigos que apresentaram um ao outro se casam, e os vemos discutindo sobre uma mesa no novo apartamento. Em paralelo a estas elipses estão depoimentos de casais de velhinhos, contando sobre como se conheceram. Um deles, em específico, fala sobre um espaço de 34 anos que ficaram sem se ver; outros dois se divorciaram e ficaram 35 anos separados até decidirem reatar; outros dois viveram a vida toda à metros de distância, mas só se encontraram em um elevador, anos depois. É impossível dizer quantas coisas aconteceram nesses espaços, quantos momentos marcantes se passaram, e quantos frívolos se esvaíram. Tudo que de concreto ocorre à Harry e Sally ocorre nestas elipses, e se materializa no filme por meio do relato de um ou de outro.
O que vemos é quase uma abstração, cenas onde os dois mais comentam sobre os grandes momentos da vida do que propriamente os vivem. Se há algo de brilhante é como Rob Reiner consegue filmar, por meio destas cenas, as mudanças causadas por estes momentos: caminhadas que acompanham as estações, o desenvolvimento da tecnologia e como ela muda o comportamento e as relações humanas, um apartamento vazio que então ganha um tapete. Ao final, vemos apenas conversas, algumas delas ao vazio, outras delas repetitivas (a amiga que fica anos com o homem casado): em uma cena, Harry e Sally são enquadrados com uma janela para um jardim ao fundo, e não consigo com todas as minhas forças lembrar sobre o que conversam. A rigor, não importa.
E todas essas coisas que não vemos culminam, novamente, na cena final. Dotado de renovadas confiança e certeza, Harry agora caminha em direção a Sally: seu rosto perdido, suspenso, flutuando em meio às luzes ao fundo. Cortamos para um plano dela, deslocada em meio a uma festa com rostos desfocados de casais se beijando ao seu redor.
Os dois nunca estiveram, em nenhum momento do filme, em contraplano: um sempre invade a cena do outro (Sally interrompe o beijo no início, Harry interrompe o beijo no aeroporto), um está sempre simétrico ao outro (vendo o filme, comprando livros). O contraplano são os outros, os casais que se juntam ao seu redor, as elipses que não vemos, as pessoas que olham para Sally quando esta finge o orgasmo na cafeteria. O contraplano é o próprio passado dos dois, mas nunca um, o outro.
Faz apenas sentido que, quando finalmente se beijam à hollywoodiana, a câmera aplica um zoom out e os perde em meio a multidão. Apenas mais uma história de muitas, que acompanhamos por meros fragmentos. E no final lá estão os dois, atores recitando os passos imaginários que os juntaram. Assim como todos os casais de velhinhos, interpretando histórias de outras pessoas. Na teoria, a farsa, os vazios, o nada entre as poucas coisas. Na prática, vemos toda uma vida.