Crítica | Lavoura Arcaica

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O sentimento de ausência de fôlego é o elemento comum que o espectador e leitor de Lavoura Arcaica – filme e livro – compartilham.

Luiz Fernando Carvalho consegue passar para a tela grande o que Raduan Nassar criou na folha. 

Lavoura Arcaica, escrito por Raduan Nassar em 1989, teve sua adaptação para o cinema em 2001 e marcou a estreia de Luiz Fernando Carvalho no mundo de longa-metragem. O filme é extremamente fidedigno ao livro por não ter sido produzido com um roteiro, mas sim com improvisações e atuações feitas a partir do texto de Nassar. 

A obra segue o fluxo de consciência de André, personagem principal. A organicidade e a falta de fôlego da escrita que dispensa pontuações e virgulas são traduzidas na atuação de Selton Mello. A narrativa que André constrói é exposta quando é confrontado pelo seu irmão mais velho, Pedro, que quer levá-lo de volta para o seio de sua família rural e estruturalmente patriarcal. 

Temos como premissa, tanto no livro quanto no filme, que o motivo da partida de André é o relacionamento incestuoso com sua irmã Ana. Porém, no livro, essa premissa pode ser questionada por ser em primeira pessoa, são as percepções e relatos de André que levamos em consideração. Não há uma fala ou resposta de Ana em relação ao sentimento que o irmão nutre por ela. No filme, Ana também não tem falas, mas, diferente do livro, existe a materialização do desejo carnal do irmão. 

André também sexualiza as atitudes de sua mãe nos momentos de afeto, o que a fotografia de Walter Carvalho conseguiu demonstrar com os tons neutros e claros que representavam a aparente pureza que a casa deveria ter. 

O personagem inclusive parece culpabilizar a sua mãe pelo sentimento que tem por Ana: “(…) se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição.”

Ao voltar para casa com Pedro, André reencontra seu irmão caçula, Lula (interpretado por um jovem Caio Blat), que o tem como exemplo. Quando Lula confessa a André que, assim como ele, quer fugir de casa para viver suas próprias aventuras, o protagonista relata ver nele os olhos primitivos de Ana, e o toca aparentemente contra sua vontade, pois o irmão por duas vezes questiona o que ele estava fazendo. 

Esse ponto me parece crucial para entender que André confunde afetividade familiar com desejo sexual e que talvez a relação que diz ter com a irmã não exista ou seja somente uma vontade que ele, e tão somente ele, externou. Diferentemente do filme, em que ele externa sua vontade e é correspondido por Ana. 

Outro ponto importante é a relação de André com o seu pai. Durante toda a narrativa o protagonista demonstra sentir um desajuste em relação às expectativas e aos preceitos que o pai imbui ao conceito de família. Os sermões, tão importantes para o pai ratificar os princípios da família, são motivo de aversão para o filho. O maior problema de André não parece ser a relação de incesto com a irmã, mas sim uma revolta para com o seu pai. É a ele que o protagonista quer enfrentar com as suas relações com os irmãos, com a repulsa ao trabalho rural e a fuga de casa. Ele faz o papel de filho pródigo. 

Os lugares à mesa também têm significação para o personagem, aqueles à direita do seu pai seriam o galho do próprio pai, e à esquerda, como André descreve, seriam o estigma de uma cicatriz, uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto pela carga de afeto. À esquerda sentavam a mãe, André, Ana e Lula. 

De novo, não se sabe, pela narrativa ser pela visão de André, se as relações incestuosas são fruto de uma preconcepção que ele faz da significação de lugares somada à hostilidade ao que o pai prega ou se realmente existe uma sexualidade recíproca entre àqueles que se sentam à esquerda. 

Tanto livro quanto filme demonstram a primazia da arte nacional, tendo recebido diversos prêmios. Eles são o retrato do que melhor o brasileiro produz: literatura e cinema de qualidade. 

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