Crítica | A Espinha do Diabo
Minha relação com o cinema é, acredito, como a de todos os seus amantes: na maior parte do tempo, não consigo passar mais de dois dias sem assistir a um filme, mas, as vezes, passo até semanas sem (mas não muitas), talvez desacreditado de que a próxima coisa que assistir, por melhor que seja, vá se tornar especial e me mover de uma maneira diferente.
Felizmente, assisti ao fabuloso “A Espinha do Diabo”, facilmente meu filme favorito do visionário Guillermo Del Toro.
Apenas seu terceiro longa e ainda antes de se tornar mundialmente conhecido graças ao bom “Hellboy”, o jovem clássico “O Labirinto do Fauno” e o vencedor do Oscar de Melhor Filme “A Forma da Água”, este é um daqueles filmes que, acredito, levarei comigo por muito tempo e que necessitarei de diversas revisitas para absorver tudo o que oferece.
Apresentando uma premissa aterrorizante em duas instâncias, acompanhamos os primeiros e decisivos dias do jovem órfão Carlos em um orfanato em uma parte inóspita da Espanha, no meio de sua Guerra Civil. Lá, descobrimos segredos de todas as pessoas que habitam o local, Carlos começa a ter visões de um garoto fantasma e percebemos que algo terrível está prestes acontecer, seja pelo sobrenatural ou pelo real.
Um mestre em transformar suas histórias de fantasia em relatos históricos, del Toro nunca me encantou tanto quanto neste árido filme que, em seus curtíssimos 108 minutos, sugere uma série de mistérios e sub-tramas que tornam aquele fragmento de mundo na representação perfeita do que vemos: um número de crianças sem casa, com pouca ou nenhuma esperança, que tem de recorrer ao fantástico para tornar o longo passar dos dias em algo, no mínimo, suportável.
Logo fica claro que Del Toro tem pouco ou qualquer interesse em desenvolver todas as crianças, sendo que a inesperada amizade que surge entre o Jaime, de Íñigo Garcés, e o Carlos, de Fernando Tielve, comunica tudo que o filme precisa. O cineasta ainda nos manipula para não nos afeiçoarmos por eles logo de cara, sendo que Jaime é um projeto de bully, assim como seus capachos, ao passo que Carlos tem sua coragem afetada pela performance de Tielve que, apesar de tornar evidente sua inexperiência, encanta na mesma proporção. Ao fazer isso, somos desarmados quando os conhecemos melhor: por trás de sua postura opressora, existe um aspirante a artista em Jaime, ele quer desenhar histórias em quadrinhos, as mesmas que Carlos quer escrever e, ao percebermos como ambos lidam com os sonhos em um lugar que não os encoraja, somos obrigados a sentir pelas milhões de crianças mundo afora que jamais tiveram sequer a chance de sonhar.
Nesse sentido, jamais senti medo pela presença do garoto-fantasma, pois assim como em “O Labirinto do Fauno” - sequência espiritual desse filme (e que traz os dois jovens atores como soldados de guerrilha) -, percebi que nem tudo o que assistíamos era real. Em uma cena, o louvável, mas trágico, Doutor Casares apresenta a tal espinha do diabo para Carlos como um líquido mágico, mas sugere para o menino, e para nós, que apenas tolos naquilo acreditariam - e o fato de ele próprio tomar o líquido adiciona ainda mais camadas a esta dualidade. Em outra cena, os meninos tentam desvendar a suposta “vida” dentro da bomba que reside no pátio. Em outras tantas, criam e repassam suas teorias sobre “aquele que suspira”. E apesar de não se preocupar em comprovar ou desmentir estes elementos sobrenaturais, del Toro os amarra perfeitamente ao nos mostrar a origem do garoto-fantasma, o impacto que sua história tem em seus personagens, e como ela rima com o título do filme.
Contando também a versão adulta sobre aqueles dias ali vividos, somos convidados a sentir pena, entre outros sentimentos conflitantes, da condição de Carmen, Casares, Jacinto e Conchita, todos fadados a destruição seja por suas próprias ações ou pelas relações precárias que desenvolvem com aqueles a sua volta. E quem pode culpá-los? Se as crianças ainda podem fugir do mundo real usando a imaginação, nem isso os adultos têm a sua disposição. Todos com arrependimentos e dores sobre a vida que viveram, o que define seus personagens é como as encerram e utilizarei de spoilers para comentar o fim de cada um, então estejam avisados:
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Conchita e Casares têm fins dignos, lutando pelos outros a sua volta e dispostos a sacrificar a própria vida. Enquanto Carmen e Jacinto, por vezes pensando apenas em si e no próprio bem, são fadados a mortes que, provocadas por suas escolhas, os deixam sem qualquer controle de seus respectivos fins. Conchita escolhe morrer ao invés de se curvar em uma cena dolorosa, enquanto Casares promete aos meninos que nunca os abandonará em uma cena comovente. Já Carmen morre sem direito a professar suas últimas palavras, ao passo que Jacinto tem o passado o puxando de volta em um final repleto de justiça, mas, propositalmente, com pouca ou nenhuma catarse.
Um ávido fã do gore, del Toro não hesita em rebuscar os tons do filme para tornar a morte ainda mais latente quando esta chega. Vemos crianças sendo assassinadas cruelmente, e as vemos lutando e realizando tarefas que jamais deveriam. Mas sua maior vitória como cineasta foi conseguir tornar um filme que tinha tudo para ser um verdadeiro pesadelo em um exemplo de resiliência e que jamais deixa de mostrar a infância e a luta naqueles meninos como algo lindo de se presenciar. Pois, fica claro ao final da projeção, que ao enfrentarem tudo que enfrentam, e vencerem, ali já não são mais os mesmos meninos, e sim jovens homens em busca de algo que, até agora, não lhes fora permitido. Fossem seus adversários dragões, e teríamos um belo filme família em nossas mãos.
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