Crítica | Amores Brutos
Precisei de menos de cinco minutos para pausar o primeiro filme de Alejandro González Iñárritu.
Sou um amante de animais - que infelizmente ainda não se tornou vegetariano - e a simples ideia de que seres humanos ganham dinheiro vendo cachorros brigarem até a morte me dá vontade de vomitar. Decidi então pesquisar sobre a produção do filme antes de seguir e, de acordo com o diretor, as cenas de luta são na verdade cachorros brincando com corantes vermelhos em seus pelos e - um excepcional - jogo de câmeras. Inclusive chega a ser perceptível que eles jamais se mordem ou se machucam de verdade, mesmo que isso não diminua o impacto destas cenas.
E caso não tenha ficado claro, “Amores Brutos” é sobre cachorros e seu papel na vida de seus donos, no caso deste filme, cada um deles representa uma esfera da desigual sociedade mexicana: um mendigo, um jovem da periferia e uma modelo. Porém a obviedade da crítica social fica submersa no potencial de choque do longa. Poucas vezes me senti tão desconfortável assistindo a um filme, mas o grau de engajamento cresce gradativamente, te impedindo de deixar a projeção no meio. Conectando as três histórias por um acidente de carro, recurso hoje saturado, mas sempre interessante, todas são “cativantes” por si só, mesmo que umas funcionem melhor do que outras.
O núcleo protagonizado por Octavio e Suzana conta com uma performance apaixonada de Gael Garcia Bernal, interpretando um jovem apaixonado e, dentro do possível, bom, que quer apenas ganhar dinheiro para mudar de vida e salvar a cunhada do irmão abusivo. O jogo de gato e rato que os três protagonizam interessa justamente por estar fadado a tragédia, seja coletiva ou individual e Iñárritu demonstrava ali a habilidade de dirigir seus atores, sendo que em diversos momentos eles comunicam as sensações do roteiro de Guillermo Arriaga apenas com olhares. A câmera na mão faz bem o trabalho de nos colocar dentro daquela casa espremida e também de reforçar a instabilidade da vida e da índole daqueles personagens.
O segundo ato toma uma drástica mudança de cenário, sendo que o acidente provocado por Octavio acaba por tirar a perna de Valeria, uma supermodelo recém promovida de amante a mulher (e, por favor, digo isso do ponto de vista do personagem, não meu). Porém, seu marido, um editor de revista e acostumado com os visuais, não consegue lidar bem com a deterioração exterior e interior da mulher que o fez deixar a mãe de seus filhos por oferecer uma vida menos “chata”. E se a decadência da beleza já seria o suficiente para tornar esta sub-trama em algo conceitualmente valioso, Iñárritu ainda brinca de Godard ao parar a câmera em diversos ângulos do apartamento espaçoso dos dois, que começa a refletir a relação também decante entre eles. Ainda assim, talvez por representarem o outdoor e a fama, este seja o arco menos empático de todo o filme.
Já o ato final é o mais exaustivo (no bom sentido), graças a uma performance visceral de Emilio Echevarría como um mendigo/assassino serial/pai/amante de cachorros. A simples maneira como o homem leva a vida é enigmática, o modo como opera para executar suas vítimas é meticuloso - e reforçado por uma quase irônica trilha, movida a uma batida incessante - e a resolução de seu ato é comovente por vermos um ser até então implacável se despedaçar em nossa frente. Aqui Iñárritu brinca com perspectivas, fazendo “corpos” ficarem na frente de outros, escondendo, revelando, ofuscando, algo que visivelmente aterroriza aqueles que sabem o que a presença de El Chivo significa.
Claramente inspirado por “Pulp Fiction” em sua estrutura, “Amores Perros” se mostrou influente na década seguinte e é possível ver traços de seus temas e visuais no jovem clássico “Onde os Fracos Não Tem Vez”, por exemplo. Em seu primeiro longa Iñárritu já mostrava sua afinidade por projetos singulares, mas apesar de conseguir se superar posteriormente na carreira, jamais igualaria a crueza de sua estreia.
E se você acha estranho que em um filme sobre cachorros eu não tenha falado sobre o papel deles na narrativa até agora, é porque a genialidade de “Amores Perros” é sutil. Em seu primeiro ato, cachorros representam esperança de uma vida melhor. No segundo, amparo em um momento difícil. Em seu terceiro, o conforto por uma perda inestimável. Em todos, eles estão inseridos em meios violentos e acabam por inspirar violência em seus donos: seja nas lutas, seja nas discussões, seja na nauseante cena onde Cofi faz a única coisa que lhe fora ensinado a fazer e que finaliza o arco dos caninos, e dos humanos, de forma triste, trágica e o pior, circular.
“Amores Perros” é um filme brutal. E Inesquecível.
9
*É interessante apontar que o filme teve papel fundamental em tornar ilegal a luta de cachorros no México, algo que aconteceu apenas em 2017.