Crítica | Vagabond

VARDEANDO POR AÍ

Varda busca em Vagabond o ápice de seu Cinema


Agnès Varda é uma das grandes diretoras da história do Cinema não (apenas) por conta de sua experimentação com estilo possibilitar descobertas encontradas por poucos, mas porque essa experimentação tornou quase impossível de determinar com exatidão o que faz dos filmes dela serem o que são.

Protagonistas subjugadas, discursos sobre a imagem, um senso de liberdade no registro do mundo, contestado com as amarras limitantes que a sociedade tem em todos - estejam eles sob a tutela de seus sistemas ou vagando em busca de qualquer coisa. Todos elementos identificáveis na extensa filmografia de Varda, mas nenhum deles representado por um conjunto específico de signos.

Alguns de seus filmes são mais livres, outros mais formalistas. Uns utilizam o virtuosismo (seja ele em cena, ou antes dela na decupagem, ou após ela na edição), outros parecem apenas apontar a câmera. Uma habitante reflexiva e sensível de seu tempo e lugar no mundo, pode se dizer que, o que une todos os seus filmes, é a complexa e multifacetada ideologia política de sua autora, e entre a melancolia e um indomável senso de ironia do destino, todos conversam com a inevitabilidade do mundo.

Coisas que, para alguém que veio da fotografia e acreditava que seus filmes eram uma espécie de “escrita cinematográfica", são bem difíceis de se registrar com uma câmera, ou de se resumir com palavras.

O que me parece culminar em Vagabond (1985), um filme sobre o ato de fugir, de procurar não ser vista, em um mundo onde isso quase não mais é possível - mesmo uma década antes do advento da internet.

Fuga que Varda assume também como linguagem cinematográfica. Mais de uma vez as resoluções, dissoluções e revoluções da narrativa não são mostradas - em uma cena, ela apaga a vela e cortamos do escuro para um tempo futuro, em outra a câmera desliza para o lado, mostrando as folhas das árvores enquanto um ato de violência acontece no chão. Tal qual nossa protagonista, acabamos por não ver os efeitos de seu modo de vida, acompanhamos ela em sua fuga preservatoria que a permite seguir em frente mesmo quando tudo indica que precisa repensar as próprias escolhas.

Assim, é fácil apontar Mona como uma pessoa egoísta, inconsequente e teimosa, mas o que move o filme é justamente essa sensação de falta de sentido, de propósito. Afinal, assistimos um registro impossível (quanto a cadáveres desconhecidos, só nos resta imaginar), costurado com depoimentos que quase desaparecem perante a força da narrativa ficcional, do que me parece ser uma tentativa de Varda de buscar a identidade de sua “musa” cinematográfica. Algo que passa pelo nome da protagonista, talvez simbolizando enfim um traço determinante de seu Cinema. Sua musa máxima só poderia ser alguém que nasce morta, e a qual conhecemos tanto pelo registro de suas ações (algo permitido apenas pelo Cinema) e pelas falas documentais de quem a conhecia. A importância de registrar algo, mesmo que este algo não exista, com o intuito de extrair dele sensibilidade, parece conversar com tudo que a diretora faz.

Apesar de remeter a Deserto Vermelho (1964) em como usa o crescimento urbano e industrial de maneira a sufocar sua protagonista, e de funcionar dentro de uma estrutura semelhante a de Cidadão Kane (1941),  porém substituindo a solidão na mansão pelo conforto de uma tenda, com uma premissa que poderia ser a continuação de Aos Nossos Amores (1983) caso tudo desse errado, Vagabond ainda é um filme que parece se basear apenas em tudo que a própria Varda fez. Que parece existir no imaginário particular de sua obra, talvez os únicos filmes que a própria realmente conheça (por declaração, Varda não se tornou Cinéfila até tarde na vida, se um dia se tornou).

As locações degradadas de La Pointe Courte (1955), a iminência extenuante de Cleo (1962), a patologia como motivo de As Duas Faces da Felicidade (1965), sua paixão por registrar o mundo e seus cantos esquecidos em seus muitos documentários.

O que esse jogo não de referências, mas de semelhanças que termina em si mesmo permite, é um Cinema tão puro que esculpe mesmo na sujeira de cada imagem uma beleza permitida apenas, parafraseando Scorsese, para os Deuses do Cinema.

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