Crítica | Morte no Nilo

O retorno do Poirot de Kenneth Branagh traz mais do mesmo: direção de gosto duvidosa sustentada por uma bela história de Agatha Christie.

Agatha Christie é uma das autoras mais lidas do mundo, sua obra define o romance de assassinato do século passado com crimes, personagens e intrigas replicadas e homenageadas em diversos livros, filmes e peças do gênero desde então, por consequência sempre houve vontade e tentativas de adaptar seus trabalhos para o audiovisual, algumas com mais sucesso e outras com menos. Famoso por adaptar Shakespeare para o cinema nos anos 90, em 2017 Kenneth Branagh lançou o seu “Assasinato no Expresso do Oriente”, filme que fez considerável bilheteria e o habilitou para seguir com seu Hercule Poirot, interpretado por ele mesmo nesses filmes, em “Morte no Nilo”. Com uma história mais cinematográfica que seu antecessor e uma grande escala de produção, Branagh não foi capaz, mais uma vez, de obter um bom resultado em termos de direção, com montagem preguiçosa e fraca construção visual de cenários potencialmente memoráveis, ele faz pouco esforço para criar atmosfera envolvente e prefere esfregar na cara do público qualquer informação que ele julgue relevante. O elenco menos estrelado que do seu antecessor traz altos e baixos e encontra problemas ao depender de Gal Gadot como a personagem central da trama, aliás, outra dificuldade da película é justificar a quantidade de subtramas acrescentadas com pouca intenção e que alteram pouco o rumo da narrativa e parecem servir apenas para distrair o público da dificuldade que o roteiro tem para reproduzir o clima misterioso e instigante dos livros de Christie.

A história de “Morte no Nilo” começa com o detetive Poirot num bar em Londres, onde vê Jacqueline de Bellefort (Emma Mackey) apresentando seu noivo Simon Doyle (Armie Hammer) para sua amiga magnata Linnet Ridgeway (Gal Gadot), seis semanas depois, no sul Egito, Poirot encontra seu amigo Bouc (Tom Bateman) que o convida para o casamento de seus amigos Linnet e Simon. Logo depois, a noiva aborda o detetive e conta que sua amiga Jacqueline não aceitou o roubo de seu noivo e está perseguindo o casal pela lua-de-mel, inclusive no Egito, Poirot sugere que o casal volte para casa e comece a vida conjugal logo, porém o noivo resolve alugar um barco e levar seus convidados para um longo passeio descendo pelo rio Nilo. Embarcam os amigos do casal e Poirot, mas logo na primeira parada Jacqueline também sobe a bordo e integra a tripulação de futuros suspeitos, na mesma noite ela e Simon brigam no bar da navegação depois que Linnet vai dormir e ela dispara um tiro de sua arma no joelho do ex-noivo, quando amanhece, a assistente da milionária, Lousie Bourget (Rose Leslie), a encontra morta em sua cabine com um tiro na têmpora e agora cabe a Poirot descobrir qual dos passageiros cometeu o crime. Como de costume nas tramas de Christie todas pessoas no barco têm coisas incriminadoras a esconder do detetive o que eleva todos a condição de suspeitos do assassinato, a situação piora quando na noite seguinte Louise também é assassinada, colocando todos passageiros em alerta.

Branagh enquanto diretor faz algumas escolhas difíceis de entender, por mais que a história de “Morte no Nilo” comece no bar em Londres, o filme tem um prólogo que mostra o jovem Poirot no front belga da primeira guerra mundial sendo decisivo para a vitória em uma batalha e logo depois sendo ferido pelo estilhaço de uma explosão e um tempo depois se recuperando numa cama de hospital e vendo sua noiva pela última vez. Essa ideia de trazer uma dita origem de Poirot não se encaixa na história do filme, por mais que algumas cenas posteriores sejam construídas para se ligar a esse momento inicial, elas não se justificam na uniformidadde da trama. O tema da história, por incrível que pareça, é “tudo que se faz por amor”, isso é repetido em diversas cenas em diversos contextos e tem consequências até o final, é uma motivação brega e que o roteiro usa sem nenhuma consequência na história principal, há uma tentativa de estender essa ideia para um suposto desenvolvimento de personagem de Poirot, algo que não funciona, o detetive sempre é o veículo de suas aventuras na literatura, mas os personagens na verdade são seus suspeitos, eles que precisam de motivações e desenvolvimento para os mistérios serem eficientes. Outro problema é a decupagem da fotografia, sempre que algo relevante para o mistério é apresentado Branagh apela para o plano detalhe no objeto, a trilha sonora é espalhafatosa e óbvia, por vezes tirando a imersão do filme e o excesso de close-ups nos atores é monótono, há diversas cenas que fica transparente o fato de o elenco não ter gravado no set ao mesmo tempo, aparecendo sempre em planos isolados com fundos vazios, como o céu, o rio ou o deserto para facilitar a edição (detalhe que a filmagem foi concluida antes da pandemia começar, em dezembro de 2019). A criação do sul do Egito e do Nilo com computação gráfica é mal feita e dão a impressão que os personagens estão em um jogo de videogame.

Não sei se “Morte no Nilo” vai ser um sucesso também, talvez seja, pois as histórias de Christie parecem conseguir sobreviver ilesas a qualquer coisa, e mesmo a inabilidade de Branagh atrás da câmera não fica na frente da intriga que leva os assassinatos no barco ocorrerem, ainda mais convicente para o cinema que a lançada anteriormente, a própria interpretação dele de Poirot não é ruim apesar de faltar um pouco do desprazer provocado pelo detetive nos romances, outros atores como Tom Bateman e Sophie Okonedo, além de Mackey que traz o melhor trabalho no elenco merecem destaque, mas infelizmente a bagunça visual prejudica suas atuações. Se a Fox decidir continuar produzindo filmes com Poirot ou, ainda melhor, quiser se aventurar com a outra grande detetive de Christie, Miss Marple, eu torço para que escolham melhor a equipe criativa, porque há nítida vontade em trabalhar com a obra da autora e sem dúvidas existem muitos caminhos para isso. “Morte no Nilo” deixa a impressão de bastidores conturbados em que os elementos técnicos não trabalham em conjunto para criar uma unidade harmônica com cara de cinema de verdade, considerando os 90 milhões gastos e a escala da produção, imagino que o estúdio esperava um resultado superior ao que Branagh entregou. Não há forma que se sustente sem um bom conteúdo, mas o contrário não é verdade, e esse é o caso de “Morte no Nilo” uma boa história lutando e no fim das contas vencendo um filme mal feito.

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