Crítica | Licorice Pizza
O amor pode ser episódico e incerto
Em Licorice Pizza, Paul Thomas Anderson cria o primeiro coming of age onde seus personagens já sabem exatamente quem são e estão fadados ao fracasso caso lutem por mudança.
É indescritível a sensação de se pegar completamente imerso em um filme ao invés de apenas assistí-lo, esperando ele acabar. Obviamente essa percepção só ocorre quando os créditos rolam a tela e você constata que tranquilamente poderia viver ali por mais algumas horas, absorvido pelas cores, referências e personagens, perdido em diálogos tão confortáveis e fascinantes que o desejo de apropriação por alguma frase legal é descartado pelo respeito que se tem por aquelas pessoas. Essa é a magia de um dos melhores diretores e escritores dessa geração, escancarada em seu filme mais jovial, translúcido e engraçado.
Licorice Pizza conta a história do jovem Gary Valentine (Cooper Hoffman), um ator mirim relativamente bem sucedido que gosta de viver o mundo a seu bel-prazer, e de Alana Kane (Alana Haim) - não tão jovem, mas o suficiente para ainda ter uma infinidade de escolhas em suas mãos, embora pense que não -, frustrada com sua vida atual e se deparando com a urgência de fazer as escolhas certas para não amargar uma vida medíocre pelos próximos anos.
Paul Thomas Anderson nos apresenta eles através de uma aula de escrita. Syd Field, em seu livro Manual do Roteiro, define 10 minutos como o tempo ideal para a introdução dos sujeitos principais de um filme, contudo, o diretor aqui nos diz tudo que precisamos saber em pouco mais de 5 em um característico plano sequência seu. Gary, com 15 anos e sem um pingo de decoro e resguardo, aborda Alana, automaticamente a chamando para um encontro e perguntando sua idade. Ela, com 25 e a trabalho, sabe que ele é um adolescente. Logo, seria descartada a possibilidade de um jantar entre eles se não fosse pela confiança, autenticidade e maturidade imensuravelmente magnética do estudante e do efeito que essas qualidades impõe sobre alguém estagnada na mesmice de sua própria vida, claramente com medo de isso se tornar algo com que ela não se preocupe mais em algum tempo.
A partir dessa primeira breve conversa, tem-se início o amor episódico e incerto dos dois, em razão das novas oportunidades, dúvidas e anseios que aparecem a cada esquina de uma Los Angeles colorida, imprevisível e dinâmica, mostrada através de lentes que evidenciam o carinho infindável que Anderson tem por sua cidade natal. O refinamento do diretor brilha ao homenagear o Vale de São Fernando com cores primárias que parecem mais vibrantes, intensas e bonitas do que o normal, mas não de forma expositiva, como poderia fazer explorando planos abertos simulando o que Damien Chazelle fez em La La Land, e sim de maneira singela, em segundo plano, sempre acompanhando os momentos heurísticos de seus tão queridos Gary e Alana - os quais PTA trata com o maior cuidado e devoção - enquanto tentam se apaixonar por outras pessoas para não se apaixonarem de verdade um pelo outro.
Falando em devoção para com os personagens, Cooper Hoffman e Alana Haim conseguem compartilhar da adoração que seu criador tem por sua arte através de suas respectivas atuações. É difícil de acreditar tendo em vista o quanto eles brilham, mas esse é o primeiro trabalho dos dois protagonistas. Hoffman, ao contrário de seu pai, o já falecido Philip Seymour Hoffman - rosto carimbado nos filmes de Paul Thomas Anderson - possui uma leveza e jocosidade inerente a si, diferente de seu genitor. Mas por mais que ele seja fascinante, Licorice Pizza possui dona e é a irmã mais nova da banda Haim, a qual PTA já dirigiu alguns clipes musicais e possui uma relação afetuosa.
Alana dá vida a única personagem da narrativa que parece estar insatisfeita sob sua pele e, consequentemente, carrega o peso de um elefante sendo uma formiga. Enquanto Gary diz, com todas as letras, que o seu mundinho era a única coisa que importa para ele, Jon Peters (representado por um incrível Bradley Cooper) se orgulha enfaticamente de ser um cafajeste e Danielle, sua irmã mais velha, carregar uma tranquilidade meditativa de quem já sabe que a maioria das coisas da vida estão fora do nosso controle, Alana orbita entre diversas constelações diferentes, flutuando entre acontecimentos e pessoas, rezando para que apontem e solidifiquem sua versão adulta e mais respeitável, para que contradigam que onde ela mais se sente confortável é se aventurando com crianças uma década mais novas. Naturalmente, não seria algo fácil de se fazer mesmo sendo uma atriz gabaritada, quem diga uma estreante, mas a esse ponto eu acredito que as três irmãs tenham o mesmo “elemento X” que o Professor Utônio derrubou quando criou as Meninas Superpoderosas. Alana tem a facilidade de quem atua uma vida inteira e a crueza com que demonstra a ambiguidade de sentimentos de sua mais nova persona é magistral e sedutora, retendo nossos olhares e atenção absoluta como se fossemos crianças. Como se fossemos Gary.
Derradeiramente, sob o pôr do sol que nunca determina o fim do dia mas sim o começo de uma noite cheia de eventos e descobertas, Paul Thomas Anderson nos mostra momentos esporádicos e corriqueiros em que crescemos em amor enquanto adolescentes ou jovens adultos, podendo ser através de dois corpos sutilmente se tocando ou da sensação iminente de perda (No caso no cômico momento em que o Gary foi preso). PTA, também nos mostra momentos de tensão e perigo, que se expõe presentes através da música e pequenos elementos narrativos: nunca é descartado, porém nunca se consuma, como se a juventude e o fascínio por seus próprios mundos os impedisse de se preocuparem com coisas além do amor e do que fazer no outro dia.