Crítica | O Som Ao Redor
Se sobre qualquer coisa, o cinema de Kleber Mendonça é sobre o Brasil.
Encostado ao fundo de uma parede, é possível ver um quadro de “Jackie Brown”, filme de Quentin Tarantino que Kleber Mendonça Filho cita como sendo especial para seu próprio trabalho como cineasta. Em outra sequência, vemos dois personagens andando pelas ruínas de um antigo cinema. Perceber isso não é necessário para aproveitar “O Som Ao Redor”, mas faz parte importante da mistura heterogênea de conceitos que Kleber coloca em praticamente todas as suas obras.
Pintado como um retrato tão passageiro e aquém da vida no Recife, este é um filme que de certa forma se assemelha ao “Boyhood”, de Richard Linklater, caso o mesmo fosse infestado de analogias sociais tão impregnadas em cada diálogo que é como se compensassem pelo fato de, visualmente, a obra não fazer questão de ser mais do que uma filmagem sem filtros do cotidiano das pessoas que aborda. Mas o fato de estarem impregnadas também não significa que são óbvias, pois qualquer espectador menos propenso à estudar e analisar o que vê irá, certamente, se enfastiar, e acabar não mergulhando no profundo estudo de classe que Kleber proporciona.
Vemos uma dona de casa entediada com a rotina, que acha prazer tanto no vício em maconha como, literalmente, em uma máquina de lavar roupa; um casal de jovens que parece tratar o início de uma paixão com a mesma energia que o fim de um casamento por mais que pareçam compartilhar uma relação sincera; uma equipe de seguranças que passa o tempo descobrindo os traumas um do outro, pois o pesar entretêm mais que o ostracismo. Não há vilão, herói, não há nem trama propriamente dita, apenas pessoas vivendo suas vidas e por mais que você simpatize com algumas e seja induzido à desgostar de outras, Kleber é eficaz em tratá-los como humanos que, por mais simples que sejam, mostram a complexidade de uma espécie frequentemente transformada em caricatura no cinema.
Pegue o João de Gustavo Jahn, um jovem de bom coração que se vê encostado na vida graças às regalias do legado de sua família. Seu status não o impede de gostar tanto de sua empregada de longa data como de suas filhas e netas, insistindo que uma coloque o chinelo para não levar choque e pegando outra no colo em um simples ato de carinho, porém é vítima da própria complacência ao comparar um período de passeio na Alemanha, que envolveu trabalho, com o emprego noturno do filho desta mesma empregada. Não foi por mal, não há nenhuma hostilidade em sua voz, apenas uma alienação perante à bolha que vive.
Com um design de som digno de exploração contínua, que merece ser ouvido nas revisitas ao filme, o próprio título sugere o prazer e conforto que estas pessoa encontram nos mais diversos sons: a vibração da máquina de lavar, o ensurdecedor apito que faz o cachorro do vizinho parar de latir, o som das ondas, as próprias músicas que dois jovens comentam por não serem atuais e, logo, não serem de seu arredor. E se há falhas em um projeto tão experimental e singular é justamente por este não explorar ainda mais seus elementos sonoros.
Além disso, fins inexplicados à certas sub-tramas e a falta de uma série de conflitos, que o longa parecera sugerir, acabam fazendo dele algo que aposta demais em seus conceitos e de menos nas consequências que eles provocam. É difícil se esquecer de “O Som Ao Redor” por sua qualidade, mas é igualmente complicado ser marcado por ele pela forma como esta é.
Terminando com um momento emocionante e tenso, e que sugere que um outro filme iria dar início a partir dali, o primeiro grande trabalho de Kleber Mendonça nunca é tão impactante como poderia ser, mesmo que as reverberações de seus temas tendam a se alastrar na cabeça daqueles que abrirem os olhos, e os ouvidos, para sons não tão próximos de seus arredores.