Crítica | O Pagador de Promessas
Poucas coisas provocaram - e provocam - mais dor, sofrimento e segregação do que a religião.
Toda e qualquer delas são, em suma, construídas em torno de suposições partidas de indivíduos que passaram a outros indivíduos, que então se tornaram ideias, para então se tornarem histórias, logo crenças e então costumes que regem a maneira como bilhões de pessoas levam a vida.
Em certo momento do terceiro ato de “O Pagador de Promessas”, um dos grandes da história do nosso cinema, as escadarias da Igreja de Santa Bárbara veem um pandemônio envolvendo uma amalgama de personagens que representam boa parte das esferas da população brasileira. Jornalistas a procura de sensacionalismo e distorcendo fatos para tal; apostadores que pouco ou nada ligam para algo a não ser o entretenimento e o dinheiro; comerciantes animados com o maior fluxo de público; crentes devotos que dançam, cantam e tocam como forma de vida; vigaristas tentando se aproveitar da dor dos outros; a polícia, ou pouco preocupada em proteger a paz, ou facilmente persuadida por qualquer meia informação/pagamento; representantes da Igreja Católica e sua total ignorância e intransigência; e, é claro, civis interessados com o que estava acontecendo.
É um momento caótico, onde alguns se agridem, outros correm, outros gritam, tudo por conta da promessa feita por um simples homem que temia pela vida de seu burro. Sim, caso longo o suficiente, o telefone-sem-fio da sociedade pode transformar uma promessa em torno de um animal tão cômico quanto um burro em motivo de desordem. “E eu é que sou chamado de burro”, diria o animal.
Lançado em 1962, o primeiro e único vencedor Brasileiro da Palma de Ouro no Festival de Cannes e primeiro filme sul-americano indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, segue sendo um retrato tragicômico do Brasil de 2021. Onde a crença desenfreada, aliada ao condicionamento de pensamentos que nos chegam mastigados e não hesitamos em engolir, tem por tornar uma população em seres ignorantes e que precisam apenas de um empurrão para serem lançadas a uma barbárie, mesmo que essa seja originada, novamente, por algo tão… pequeno.
Pois a não ser para Zé do Burro (o nome!), a vida daquele pobre animal - um belo MacGuffin, mas muito mais do que isso - de nada importa para nenhum dos divertidos e coloridos integrantes da confusão na escadaria, mas apenas por acreditarem que o homem é uma espécie de reencarnação de Jesus Cristo já é o suficiente para colocarem a própria vida em risco para protegê-lo. Algo que diz, com certeza, mais sobre eles do que sobre o personagem de Leonardo Villar, que ilustra no olhar e no cansaço físico o quanto toda aquela situação o deixa exausto a ponto de explodir. Tudo que ele queria era cumprir a promessa que fez, mesmo que em determinado momento comente sobre algo que qualquer cético apontaria: quem lhe garante que quando chegar em casa o tal burro não estará morto?
Encontrando eco em algo tão recente como o seminal “Silêncio”, de Scorsese (o qual abordarei mais abaixo), essa relíquia do cinema brasileiro é não apenas atemporal em seu conteúdo, mas em sua forma: percebam como Anselmo Duarte, o diretor, retrata a cruz durante a narrativa. Primeiramente como um peso gigantesco sobre o ombro de Zé do Burro, então como um empecilho para que sub às escadas (por si só algo evocativo), e até como o motivo do distanciamento entre ele e sua mulher, em um plano onde são separados pela cruz, que corta a tela verticalmente. E Anselmo jamais nos oferece sequer um close do… objeto, optando por mostrar a influência da religião por meio das danças, cânticos e sinos. Com uma encenação conceitualmente complexa, o cineasta usa o mar de pessoas como maneira de pintar seus quadros, seja com todos rodeando Zé do Burro, ou abrindo um corredor que faz o Padre parecer Moisés - e prestem atenção nos plongée que parecem tornar o homem um ditador em certo momento, mostrando que mesmo sendo centenas, de nada aquelas pobres pessoas podem contra algo que julgam ser infinitamente mais poderoso do que qualquer exército.
Seguindo uma lógica narrativa que, por sua vez, impressiona pelo dinamismo da edição de Carlos Coimbra, e que encontra na montagem do longa mais uma força, é chocante quando percebemos que todos os acontecimentos se dão em menos de um dia, mas a forma como toda a comunidade parece se envolver com o caso soa orgânica o suficiente para que entendamos de onde vem todo mundo. E há brilhantismo em momentos menores, como naquele que lembra o clássico entre “O Bom, O Mau e o Feio” (que seria lançado só em 1966!), onde personagens trocam olhares que comunicam suas intenções e, é claro, toda aquela confusão em uma escadaria lembra imediatamente de “O Encouraçado Potemkin”. E considero hilária, por retrospecto, a maneira como chegam os bispos, de preto, e a trilha traz acordes graves, remetendo DIRETAMENTE ao que se veria em Darth Vader anos depois.
Mas o momento mais arrebatador de “O Pagador de Promessas” vem no final, quando o pandemônio causado por barulho, e tratado de forma cômica pela abordagem de Anselmo, termina em tragédia: o homem que queria apenas salvar a vida de seu burro, agora se encontra morto. O motivo? Por tentar abraçar algo invisível e intangível, apenas para ser impedido por aqueles que deveriam mediar essa aproximação. Mostrando como não apenas como o preconceito por crenças distintas provoca a dor, mas como mesmo sob um mesmo teto, ainda tendemos a destruir uns aos outros. Logo, Zé do Burro é alçado ao posto milagroso que tentaram lhe alçar ainda em vida, carregado por recém convertidos que devem espalhar e disseminar sua palavra (que obviamente não seria sua, mas inventada por alguém e a si atribuída). Sem ação, sua viúva segue sozinha em meio à vastidão daquela escadaria (que enxergamos de cima, em uma sacada genial de Anselmo), enquanto o motivo daquilo tudo rege alienado, provavelmente pastando e se perguntando se aquele ser (pare ele, talvez um Deus) que lhe alimentava e cuidava vai, algum dia, voltar.