Crítica | Wednesday - Bleeds

A TiA LEGAL


Reuniões familiares tendem a ser um saco. Conversas de elevador ou repetidas histórias sobre um passado distante, que perdem ou ganham um fato novo a cada recontada, parecem ser as duas únicas opções no cardápio. Tudo isso até aquele ser idiossincrático chegar, provavelmente de ressaca, mas com um sorriso no rosto, genuinamente feliz por estar ali, mas triste por ter tido que sair da cama.

Ela comparece pouquíssimas vezes, o que faz de sua aparição ainda mais especial. Ela transita entre todos os meios: consegue conversar com os adultos (pois já é um), embora os repreenda mentalmente; possui histórias que parecem inventadas (Bitter Everyday) pra dividir com seus primos, que a invejam, e sobrinhos, que ficam impressionados; e por fim se diverte com as crianças, porque sente saudade de ser uma (Townies).

Wednesday é a tia legal. Mais especificamente, Karly Hartzman. Ela possui uma banda com nome do pior dia da semana, é toda tatuada, conhece várias histórias de assassinato e True Crime (Carolina Murder Suicide) e muitas referências musicais e literárias. Fala abertamente sobre política e também como o amor a assusta na linda e singela The Way Love Goes, o que não a impede de vivê-lo (com seu guitarrista e nosso queridinho MJ Lenderman, nesse caso).

Lenderman é parte essencial de Bleeds, assim como Hartzman é fundamental pra existência do aclamado Manning Fireworks (ele compôs You don’t know the shape i’m in enquanto ela dormia no quarto ao lado). Naturalmente sua relação atravessa de maneira direta suas composições, como é o caso da majestosa balada country Elderberry Wine, onde a guitarra dele, junto ao pedal steel característico da banda, nunca a abandona, mesmo que essa seja uma música sobre abandono - ou pelo menos sobre deixar algumas coisas pra trás.

E, bom… Os dois terminaram seu namoro durante a criação do disco, em 2024, sem deixar nenhum de seus companheiros de banda saber. Nesse mesmo tempo, ele ganhava reconhecimento mundial enquanto ela cantava o refrão da principal faixa do álbum, She’s Leaving You, enganando um total de zero pessoas.

Lenderman segue criando e gravando com a banda, mas para de viajar pra tocar. O mais engraçado disso tudo é que nenhum dos dois álbuns é sobre término, muito menos sobre amor. Aversos ao padrão Stevie Nicks e Lindsay Buckingham, e muito mais adeptos ao protótipo Dylan/Baez, uma música por álbum basta - transborda em pessoalidade e intensidade ("I wanna have your baby; 'Cause I freckle and you tan, I find comfort that angels don't give a damn; But everybody gets along just fine, 'Cause the champagne tastes like elderberry wine”) e, após isso, eles seguem prosando sobre suas vidas extremamente cotidianas.


O amor então se torna desnecessário, por mais que seja encantador. Não é sobre aquilo que ela quer conversar, e serve mais como forma de conselho pra quem escuta do que propriamente um desabafo. Sem cuidado, tudo amarga. Então ela volta a contar histórias. 

Townies e Wound Up Here brincam de forma irônica com a fluidez entre o sentimento de pertencimento e aprisionamento, e como é fácil confundi-los, ainda mais quando se é uma jovem em uma cidade pequena.

A sonoridade de ambas consegue trabalhar muito bem essa sutil variação. Nos versos, a bateria marcada e espaçada, os vocais delicados e a guitarra controlada. Nos refrões, o feedback da guitarra quase estoura os fones de ouvido, e os gritos desesperados são acompanhados por acordes tão dissonantes que quase não parecem reais, reverberando uma vida presa numa realidade completamente claustrofóbica composta por inúmeras escolhas equivocadas.

Mas ela sabe como não deixar o clima pesado. Phish Pepsi é uma clássica representação dos Beatles, ensolarada e psicodélica, unindo uma colagem de memórias tragicômicas que arranca risadas de absolutamente todos na roda de conversa (Vim aqui para uma festa no ensino fundamental, Andei de bicicleta para casa bêbado de um Four Loko, A última vez que te vi foi em uma transmissão ao vivo de um funeral, Você riu quando contou, Uma história de quando éramos jovens). Gary’s II parece uma apresentação de Sarau. Os instrumentos soam distantes mas estranhamente íntimos, como se você tivesse que contar uma historia engraçada no funeral de alguém que terminou sua vida usando máscara de oxigênio mas não abriu mão de seus últimos cigarros.

E então vem Bitter Everyday, que é pra mim a faixa mais importante do disco. A festa acabou, grande parte dos familiares já foi embora e o que resta é o final de uma cerveja na mão e a sensação de ter ficado tempo demais. As guitarras soam cansadas e enraivecidas. Talvez enraivecidas por estarem cansadas, mas ainda luminosas. Há nelas um tipo de esperança que não chega a ser otimismo, apenas o impulso de continuar. Karly Hartzman entende que as coisas fáceis na vida vão ficando mais difíceis a cada dia, e que crescer é aprender a chamá-las de normais.

E nesse ato de continuar - e de tentar transformar o que dói em anedota - que ela continua sendo a tia legal da história. Mesmo que por dentro esteja ruindo, ela canta. Não por disciplina, mas porque precisa. É o que a mantém de pé e a faz dela a última a ir embora, depois de todos, felizes, já terem a deixado.

8.5

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