Crítica | Sem Remorso (2021)
Não foram poucas as correntes nesses últimos tantos anos que tentaram reivindicar o cinema de ação tendo como arsenal séries de filmes mais ou menos conectados que estariam desenvolvendo uma nova maneira de pensar o gênero. Foi por conta da proposta de realismo abarcada por Nolan e Marvel (que foi se flexibilizando, até certo ponto) que surgiu o autorismo vulgar, uma maneira de julgar como sério um cinema de exageros: o que se teoriza é justamente que essas superfícies absurdas de filmes como os de Paul W. Anderson estão nutridas de significado e valor artístico.
Nunca fui exatamente adepto da ideia, embora ache válido a tentativa de se encontrar arte mesmo no que mais parece produto. Em uma escala maior, e em uma dinâmica mais corrosiva, um diretor que trabalha sob restrições de franquias hoje não se difere tanto do diretor que trabalhava no sistema de estúdio de antes.
Ainda assim, ainda mais no cinema americano, a ação parecia cambaleante, gênero preterido e periférico, cujas produções raramente ganham destaque. Uma possível exceção é a série John Wick, outra é Tom Cruise.
Eis que surge o filho de Sergio Sollima, importante mas igualmente injustiçado diretor de faroestes italianos, dos quais assisti poucos filmes e apenas recentemente. Veio, então, o interesse por esse Sem Remorso (2021), filme que dispensei à época por parecer se enquadrar em um gênero já delegado ao streaming.
Na primeira porção do filme, quando vemos Michael B. Jordan em uma festa de família, interagindo com alguns amigos e com a esposa, a encenação remete à qualquer produção genérica de Netflix e/ou canais de TV fechada. A maneira como o cenário é compreendido pela cena não adiciona nada: parece um fundo de um cenário alugado como locação, e as próprias interações entre os atores (e a maneira como eles são enquadrados, e a forma como se materializam pela lente) parecem quase pedestres, ao menos pro tamanho do orçamento.
Mas logo chega uma sequência noturna, onde vemos o protagonista ouvindo música em um sofá enquanto a esposa é assassinada no quarto, e o filme passa por uma metamorfose em si mesmo, se tomando de uma composição plástica de minucioso controle de cor: a pele escura do ator parece pincelada com delicadeza nos cômodos escuros, que agora tomam outra proporção de apropriação pela cena. Ele embaixo, ela em cima, ela dormindo, ele ouvindo música, a escuridão e o espaço entre os dois: uma cena que compreende a restrição dos sentidos, e culmina na eclosão de um filme que, até então, já havia se mostrado brutal e impiedoso.
Pensemos quando morrem os companheiros, em cenas violentas e gráficas, onde a ação da cena é filmada com uma indiferença quase sádica pela câmera - que me lembrou Dragged Across Concrete (2018). Momentos que sequestram a atenção e nos jogam diretamente ao plano: não há floreio, corte, zoom, alteração de velocidade ou cor. É uma violência limpa. E se a primeira cena do filme soa gamificada (a coreografia dos atores, o barulho das balas, a coordenação entre o tiro, a câmera e o alvo), ela é redimida por momentos como esse: Sollima não trabalha com um realismo aumentado, ou com uma dinâmica de imersão, todas as suas atenções estão no ato.
Mais tarde, quando o grupo está ilhado no último andar de um prédio, o filme volta a brincar de videogame, agora com uma sessão de sniper. E o que pode o videogame entregar ao cinema que não a ideia idiótica de interação? A tridimensionalidade, que no século 21 passou a ser pensada de uma maneira diferente das que pensavam Murnau, Mizoguchi, Cottafavi, se construindo menos em torno de relevo e mais no fluxo (pensemos no que faz Hou em Millennium Mambo e em todo o academicismo que se sucedeu), retorna em Sollima, que não apenas altera cadência e atmosfera conforme o que a cena pede (pensemos nos marrons das cenas caseiras do início do filme, na escuridão da cena seguinte, no verde musgo e o jogo de intenções veladas nos QGs), mas explora o espaço com consistência: diferentes planos de uma mesma cena serão iluminados de maneira semelhante, contarão com uma ambulação em cena semelhante e com movimentos de câmera semelhantes. Há, ao mesmo tempo, consistência e variedade, condensação e adaptação.
Há também uma predisposição à rima não como um modo do filme acenar para si mesmo, mas de se estruturar e movimentar internamente: comparemos este momento, da ilhagem da equipe com a cena do assassinato da esposa. A mesma dinâmica cima-baixo, a mesma compreensão de diferentes elementos, mas agora multiplicada e ampliada. Outro par de cenas são os assassinatos cometidos pelo protagonista: um em meio ao fogo e outro em meio à água. Em ambos, two-shots de B. Jordan com suas vítimas, em ambos ele está a esquerda, e em ambos as propriedades da imagem parecem se alterar (a inflamação pelo fogo, a retardação pela água).
E ainda há mais a se pensar e elaborar, mas volto agora à natureza do projeto: um filme de grande orçamento, de uma tentativa de franquia com um ator de primeiro calibre em Hollywood. O que poderia fazer Sollima com um projeto seu? Talvez a resposta seja, sem a necessidade de malabarismo, uma nova possibilidade para todo um gênero.