Crítica | Twin Peaks

Mistérios da Natureza

Em série inacabada, David Lynch filma o mundo que se apresenta a sua frente


No verão de 2022, me juntei a outros quatro amigos na tentativa de gravar meu primeiro longa, com nada exceto um par de câmeras DSLR, uma solitária vara de som e as lamentações de um tripé esquecido.

Como dizem muitos diretores, você aprende mais fazendo seu primeiro filme do que na escola de Cinema. E aqueles dez dias, há quase dois anos atrás, seguirão sendo alguns dos mais memoráveis, se não por conta do resultado final - uma ou outra coisa certamente mais do que se salvou, e pretendo usar em um projeto futuro -, mas por pequenos momentos onde algo próximo de Cinema parece ter nascido.

E agora, refletindo sobre as aventuras registradas em uma pequena praia de 12 mil habitantes, em busca de filmar os mistérios envolvendo seu lago e suas supostas aparições de ET, me pego percebendo que Twin Peaks veio tarde na minha vida.

Ou talvez tenha vindo na hora certa?

A magia do tempo e a natureza das coisas, as romantizações da realidade ao redor, enquanto especulamos se o acaso seria obra do destino, ou se, como constatou Luis Buñuel em seu último filme: para o subconsciente, o acaso não existe.

Em sua curta, mas profunda investigação que chamamos de filmografia, David Lynch parece buscar por essa verdade, ou, ao menos, se maravilhar com as possibilidades de sua ausência. Mas é em Twin Peaks onde, por uma quantidade insuficiente de episódios, ele pode filmar o mundo como o enxerga.


O mistério real

No dia 24 de Novembro de 1971, um homem não identificado sequestrou um avião que ia em direção a Seattle, alegando ter uma bomba a bordo. Após uma pausa para despacharem os passageiros, o sequestrador exigiu ser levado para a Cidade do México com 200 mil dólares em dinheiro e quatro paraquedas. Pouco mais de 30 minutos após o avião levantar vôo, o homem pulou com o dinheiro, desaparecendo na noite.

Apesar de especialistas acreditarem que não teria sobrevivido ao salto, notas da quantia foram encontradas em 1980, mas seu estado de decomposição e a localização (próximo a um rio) levantaram mais perguntas que respostas - apesar de o montante estar na ordem inicial, algumas notas estavam ausentes, sugerindo que alguém as removeu. Para completar, em 2013, o homem que entregou os paraquedas ao sequestrador foi assassinado, e o crime segue sem solução. Mais de 50 anos depois, o destino do sequestrador, sua identidade e o paradeiro do restante do dinheiro seguem um mistério.

Se apresentando como Dan Cooper no dia do sequestro, o erro de um repórter ao noticiar o caso terminou por batizar o homem, hoje conhecido no mundo todo como D.B. Cooper.

O caso, não é pra menos, causou um furor na época e atrai atenção até hoje, com filmes, especiais de TV e até mesmo convenções anuais “homenageando” um dos criminosos mais peculiares da história dos Estados Unidos. Mas o que parece apenas um plano muito bem arquitetado - independente do fim dado ao homem -, quando visto pelos olhos “certos”, toma contornos sobrenaturais quando pensamos em como Cooper conseguiu esconder sua identidade (DNA foi encontrado, mas nunca comprovado), em como desapareceu completamente (tanto, que nem os caças que seguiam o avião o detectaram), e em como o caso voltou à tona por conta do acaso ao longo dos anos.

Logo, a referência parece óbvia quando um conhece a série e o caso, mas sua relação é de vital importância para entendermos a obsessão de David Lynch.


A realidade misteriosa

Eu olho para o mundo e vejo absurdo ao meu redor. Pessoas fazem coisas estranhas constantemente, ao ponto que, pela maior parte, acabamos não vendo. É por isso que amo cafés e locais públicos - quero dizer, eles estão todos por aí.
— David Lynch

Para Lynch, o mundo real oferece tudo o que chamamos de ficção - de casos não resolvidos a mistérios sobrenaturais, a uma rede de acontecimentos impossíveis que resulta em acasos que um julgaria coisa de filme - uma criança estar passeando com os pais e encontrar as notas do dinheiro, quem sabe?

Portanto, é apenas óbvio que o crime de 71 seja de tamanha atração para ele. A falta de evidências torna a especulação um exercício livre: se alguém quiser imaginar que D.B. Cooper pulou do avião e caiu em outra dimensão não estará menos errado que aqueles que acham que ele morreu na queda ou sobreviveu e permaneceu escondido até o fim de sua vida. Com um ato realizado no mundo físico, auxiliado por condições que podemos chamar de acaso - a minha parte favorita da história envolve um suposto cowboy que discutiu com os membros da tripulação por conta da demora para o desembarque, mas que nunca foi identificado -, D.B. Cooper iniciou uma investigação que, por meio século, se transformou em mitologia.

Aí que, no ano de 1989, um lenhador na fictícia cidade de Twin Peaks encontra, próximo a um rio, o corpo de uma adolescente embalado em plástico. No mesmo dia, um agente do FBI vem de Seattle para investigar o caso. Registrando sua jornada em um gravador, endereçado a uma mulher chamada Diane, o agente revela seu nome: Dale Bartholomew Cooper.

Com poucos minutos, Twin Peaks, a série, estabelece a miríade de respostas possíveis para a pergunta que a inicia: quem matou Laura Palmer? Resultando em um exercício de especulação que pode caminhar livremente em meio a mesma aura de fantasia e mistério que cercam o caso do avião.

Uma investigação do real, no campo do onírico. Os mistérios de um dia a dia que, em um dia como qualquer outro, apresenta algo que podemos ver, ouvir, tocar ou sentir, e que revira o que entendíamos anteriormente como realidade.

Em outras palavras, desde Eraserhead (1977), o Cinema de David Lynch.


Uma cidade manchada

A jornada pela história do Cinema é única, moldada por interesses pessoais que vão se descobrindo, modificando, transformando até que, idealmente, o cinéfilo encontre o nicho no qual se sente mais ligado.

Para mim, desde muito antes de sequer saber o que era o Cinema (ou tudo que podia ser o Cinema), era muito claro que o Suspense era meu gênero favorito - e daí minha frustração por anos em busca de novos filmes, mas limitado aos canais pop comuns que te mostram apenas uma fração. Como comentei lá em cima, a impressão é que Twin Peaks foi feita para mim, sob medida, e encontrá-la no auge dos meus 26 anos é um achado que não estou fazendo pouco caso de.

Pouco mais de um mês atrás, em minha busca pelas origens de Mulholland Drive (2001), que por sua vez é parte de minha obsessão em expandir meu cânone pessoal de Vertigo (1958), me deparei com um Hitchcock ao qual ainda não havia assistido, e que hoje considero um dos meus favoritos. Mas embora tenha escrito sobre a relação de ambos os diretores, principalmente em como os sonhos conectam Spellbound (1945) com vários filmes de Lynch, Twin Peaks parece ser o momento onde o aluno se permitiu não apenas emular o mestre, mas procurou expandir em cima de sua obra.

Expandir que, aqui, não quer dizer superar, se tal verbo pode sequer ser usado em relação à percepção artística, e sim, nesse caso, pegar elementos específicos e ir além, percorrer cantos antes apenas mencionados que expandem o cânone e aumentam o potencial de cada peça do quebra-cabeça.

A ponto de que a série surge quase como um exercício, ou uma investigação, do método Hitchcockiano, da teoria base de onde o Cinema de Hitchcock surge. A qual o cineasta e escritor Francês Pascal Bonitzer centraliza em torno da mancha.

Tal é a função do crime em Hitchcock. O crime faz desviar ao mesmo tempo a ordem natural das coisas e a ordem natural do cinema. Há uma mancha que precipita o olhar e provoca a ficção.
— Pascal Bonitzer

A mancha seria, portanto, algo que prende nossa atenção em meio a uma cena, ou conjunto de cenas, modificando o que se entendia até então da realidade imposta pelo filme. Pode ser um detalhe, um recurso narrativo, um gesto.

O professor Brasileiro Luis Carlos de Oliveira Jr., em sua tese de mestrado (a qual constantemente referencio), elabora sobre esta mancha, mencionando diversos filmes (de Hitchcock e de outros diretores) onde esta ressignifica uma realidade até então comum, cotidiana. Ela pode ser a chave em Interlúdio (1943), a orelha em Veludo Azul (1986), as fotos em Blow Up (1966), a janela do vizinho em Dublê de Corpo (1984), o ator idêntico em O Homem Duplicado (2013) ou, é claro, o corpo embalado de Laura Palmer.

Mas, como exercício que ainda precisa do acompanhamento “televisivo”, Twin Peaks não se limita a apenas uma mancha - como o nome do seriado já diz, estamos falando de uma cidade, e esta é tão manchada que já estamos diante de um borrão. Ou, quem sabe, de uma pintura Barroca, da qual podemos nos aproximar e observar os detalhes histriônicos de cada seção.

Na tese, Luiz Carlos comenta como o gabinete de Gavin Elster, abarrotado de quadros e pinturas, oferece quase um super-estímulo, ao passo que reforça o controle maniqueísta do homem sobre o aspecto humano (também artístico) do filme. Nesse sentido, Twin Peaks é como o gabinete de David Lynch, o qual ele também ilustra em diferentes cômodos - mais específico, no escritório de Benjamin Horne e na casa de Andrew Packard, os dois personagens que parecem reger as cordas de Twin Peaks.

Para traçar ainda mais conexões entre os dois diretores, é preciso entender também a investigação tomada pelo próprio Hitchcock ao longo de sua carreira. E que pode, de certa e limitada forma, ser resumida a um único filme - se Vertigo (1958) virá mais a frente como um legado fantasmagórico presente também no título da série, é em outro filme-teoria, este de 1954, que podemos encontrar as origens de Twin Peaks.

Em Janela Indiscreta, a mancha é descoberta apenas após um longo e exaustivo período de observação, de ressignificação do cotidiano que se apresenta na pequena amostra de mundo a qual um fotógrafo com a perna quebrada tem a sua disposição. Premissa que, por mais inspirada que tenha sido em um conto de Cornell Woolrich de 1942, encontra ecos já no século 19: em A Janela de Esquina de Meu Primo (1822), E.T.A. Hoffmann descreve o encontro entre dois primos, um deles, imobilizado por conta de uma doença, passa os dias olhando pela janela, fixando em pessoas diferentes e traçando perfis e histórias complexas sobre criaturas que enxerga apenas de longe.

Apesar de Lynch ter ele próprio se aventurado com a ideia em Veludo Azul, é em Twin Peaks que ele pode não apenas investigar as manchas no cenário que se apresenta a seu peculiar protagonista, mas fabricá-las da maneira como bem entender. A cidade, portanto, é como um grande experimento, uma expansão do invasivo olhar Hitchcockiano que interage com seus habitantes até que estes revelem suas personalidades, particularidades e, é claro, seus segredos.

Hitchcock pertence, entao, a uma escola da dramaturgia do profundo, do olhar que vasculha as forcas ocultas, os universos secretos, os desejos aprisionados. Mas ele é também um realista, um cronista da vida moderna.
— Luiz Carlos de Oliveira Jr.

De certo modo, cada sub-trama de Twin Peaks é como uma trama Hitchcockiana distinta - crimes internacionais, omissões de identidade, manipulações de terceiros, duplos, olhos, pássaros.


Além da mancha

Mas Lynch, mais do que Hitchcock, é fascinado pelas possibilidades do oculto - algo que o britânico apenas flertou, mas o qual suas raízes católicas talvez tenham o impedido de se aventurar -, e logo o mistério, o mal na floresta, encontra uma força sinistra que em Hitchcock residia no mundo real. Em Hitchcock, os mistérios são sempre distorções da psique, o horror vem sempre de patologias, de desejos obscuros, de ambições egoístas. O mal do homem é também o mal da sociedade.

E embora a estranheza que resulta em mistério envolvendo a personalidade de Dale Cooper e boa parte daquelas pessoas sugira também um jogo de travessuras prestes a ser revelado, logo fica claro que, em Lynch, as forças do mal se localizam em um lugar diferente - que, eventualmente, descobrimos ser uma mitologia inacabada, um plano de trevas acessado pelos sonhos e pelas florestas que, como professado pelos companheiros de Cooper, representa o tal mal do mundo.

Mundo que, para Lynch, possui uma pureza sincera. Ao contrário de Hitchcock, mesmo seus personagens que sofrem de condições limitantes (sejam elas mentais ou físicas) não recorrem a violência, mas a uma espécie de purificação precedente a M. Night Shyamalan. O esquecido irmão de Audrey, o agorafóbico Harold, mesmo Leo após seu estado vegetativo parece ter se tornado apenas um bobalhão inofensivo, enquanto Ben Horne passa a resistir as tentações ao sofrer um episódio de psicose. Tanto Lynch acredita na bondade das pessoas, que o assassino de Laura, em meio a tantos suspeitos odiosos, é uma entidade, um ser não-humano - pois para os suspeitos, ainda há a chance de redenção.

A doença não é mais aquilo que o martiriza, mas a solução que irá torná-lo superior aos demais cidadãos do mundo… O trauma não é mais uma patologia, um elemento debilitador, mas a origem de uma força.
— Arthur Tuoto, em texto sobre Fragmentado (2017)

Para além deles, há todos os motivos para crer na bondade de Dale Cooper, desde seu modo de ver e reagir ao mundo (a trilha especulativa que o segue é algo) a maneira como este mundo é pensado em primeiro lugar. Ao longo de suas duas temporadas, Cooper se mostra incorruptível, a versão corpórea de Lynch (não o diretor, mas o ser humano) naquele lugar que ele julga maravilhoso (o que mais do que explica a maneira como este se esbalda com as pequenas coisas), e todos os personagens tem um ou outro momento de sinceridade. Alguns têm de ser presos, outros, mortos, mas a bondade é a lei governante em um mundo que reconhece o mal como algo presente, mas não inerente.

E o modo como a série é filmada reflete essa proximidade que torna seus personagens humanos e nos permite ver além de suas manchas. Twin Peaks, a cidade, é construída com planos fechados, com quinas de lugares e ambientes, nunca vemos panoramas que localizam aquelas peças de xadrez no tabuleiro, ao invés disso, estamos sempre próximos as elas - basta um plano fechado de Big Ed, e um contraplano igualmente fechado de Norma, para nos localizarmos no café. Os rostos, em Twin Peaks, são códigos para a proximidade, seja ela reveladora de apreensão ou conforto.

A dicotomia entre luz e trevas é também endereçada sob a unidade estilística adotada para o projeto - que, mesmo trocando de diretor, procura sempre manter essa unidade. Todos os ambientes são iluminados com luzes chapadas, que não destacam nem corrompem a realidade para além de sua construção singular - mesmo quando sombras permeiam um plano ou outro, é tudo muito sutil, e se temos de ver uma mancha na cena (uma escultura, um objeto, uma imagem), os ângulos são diretos, com pequenos zooms e movimentos que revelam sua natureza obscura dentro de um contexto, até então, familiar.

Trata-se de um gênero situado na extremidade do olhar problematizado por Hitchcock… aquele olhar que tenta despir as aparências, arrancar os véus da realidade cotidiana, como se houvessem significados profundos escondidos nas casualidades.
— Luiz Carlos de Oliveira Jr.

Essas decisões dualistas seguem em tom e gênero: o horror de espreita e paranoia dá as mãos à uma comédia esquisita, que acha graça nas pequenas coisas mas esconde um senso de humor macabro. O ápice disso na dança dos irmãos Horne com Leland que, quando olhada sob o véu da realidade, surge como uma dança de demônios - de forma semelhante ao brilhante moonwalk de um figurante na escola que, no mesmo plano, dá espaço para a caminhada endereçada de dois detetives - e as cordas caipiras regidas por Angelo Badalamenti, que denunciam a natureza do suspense novelesco, parecem costurar a cena.

Já o erotismo, arma recorrente em filmes Noir e Maneiristas, logo se confunde com o romance clássico - a cena onde o relacionamento de Cooper e Audrey parecia estar prestes a ser consumado se revela em um momento de amizade e lealdade, que se recusa a corromper ambos os personagens. Parece que todas as Femme Fatale (Audrey, Josie, Evelyn) eventualmente revelam essa natureza bondosa, como se a série se divertisse com seus maneirismos, mas preservasse essa bondade como ideia governante.

O que vemos, em Twin Peaks, é um mundo atraente e gentil em sua superfície, mas que esconde trevas tão escuras quanto qualquer mansão, torre ou condomínio que Hitchcock tenha filmado. E uma coisa não tira da outra: há sinceridade na bondade, e perigo na maldade. A encenação, novelesca e apaixonada, não é corrompida se não por este mal. O que o torna, neste microverso, ainda mais potente.


O discreto charme de um hotel iluminado

Acho que é no terceiro episódio (a ideia de re-assistir e escrever algo sobre cada um surgiu, mas tenho muitos filmes pra ver) em que vemos a família Horne tendo um caloroso jantar em plano estático por alguns minutos, até que Jerry chegua com seus baguetes de queijo Brie e o que parecia um plano Kubrickiano logo se desenvolve em uma versão escrachada de Buñuel.

Mas antes:

Vide seu mundo de sutilezas aparentes (os quais a série combina com exageros histriônicos de atuação), Twin Peaks me remete também ao Cinema produzido por Val Lewton nos anos 40, em especial os filmes em parceria com Jacques Tourneur. Em seu texto Fascínio pelo Labirinto, Glen Hirshberg descreve como estes filmes se diferenciam de outras produções norte-americanas da época.

A maioria dos filmes Americanos, em qualquer gênero, mantém o que Andrew Sarris descreveu como uma “semelhança traiçoeira com a realidade”. Ao confirmar que estamos assistindo um mundo que existe com as mesmas leis de física que o nosso, povoado por criaturas que parecem, agem e reagem como pessoas que conhecemos, diretores ofereciam um fácil acesso à realidade na tela
— Glen Hirshberg

Em algo como Sangue de Pantera (1942), uma mitologia própria é construída, em um mundo que parece o nosso, mas logo claramente não é. De certo modo, a cidade de Twin Peaks não tem nada de fantástico por 95% do tempo, mas sim peculiaridades que, vistas de perto esticam os limites do possível. A super força de Nadine, a mulher do tronco, um personagem ou outro que parece ter uma espécie de habilidade sobrenatural não muito distante do brilho, em O Iluminado (1980) - a visão da mãe de Laura é, literalmente, uma cena do filme de Kubrick.

O fantástico se torna, então, uma representação quase exata do nosso mundo, mas que em sutilezas se torna o que Hirshberg sugere ser, justamente, um reflexo.

Vemos a silhueta de árvores, mas nunca as árvores, como se estivéssemos encarando o fundo de uma piscina de cima, ou do outro lado do espelho. Estamos olhando ao nosso próprio mundo invertido.
— Glen Hirshberg

E daí chegamos ao The Great Northern, o hotel onde a cidade parece acontecer.

Para além de suas semelhanças físicas com o Overlook, há a curiosa charada sobre almas e quartos que parece nos transportar de volta a 1980. E por mais que nunca vejamos o hotel em todo o seu esplendor, o vemos, tal qual o Overlook, por suas complexas entranhas, em uma lógica de encenação que não deixa de simular o movimento calculado, simétrico de Kubrick por cômodos que, por sua vez, não seguem uma lógica desvendável.

Mas entre espaços Kubrickianos e manchas Hitchcockianas, não existe melhor forma de categorizar o fantástico em David Lynch do que relacioná-lo ao maior surrealista da história do Cinema. O charme de Twin Peaks (cidade e série) vem de seus personagens, criaturas Buñuelescas que tornam momentos de acaso em manifestações sobrenaturais, sempre sob um regime maneirista no qual Lynch praticamente nasceu.

O discreto charme da burguesia, que os três filmaram mas só Buñuel batizou, contrastado com o subestimado charme do proletariado. Em toda sua pompa, Ben Horne é um personagem tão gostável como Harry em todo seu cansaço de trabalhador honesto; as relações de Femme Fatale de Josie e Evelyn não são necessariamente mais atraentes do que os dramas adolescentes (fundadores de PLL, Riverdale e tantas outras) de Donna, James e Maddy; o romance proibido e heterodoxo de Cooper e Audrey inspira tanto como o mundano de Ed e Norma. Há algo para todos, tanto os que estão diretamente envolvidos nas resoluções, como aqueles que parecem apenas adereços em uma série que revela o que muitos se recusam a enxergar: uma série é uma novela, talvez mais bem produzida pelo número menor de episódios, talvez com uma liberdade criativa maior, mas não deixa de ser uma crônica moderna que, na repetição de eventos cotidianos (os cafés, os donnuts, as piadas recorrentes), observa a magia do avançar do tempo.

Ao falar sobre Buñuel, Adrian Martin descreve justamente o poder de filmar mudanças não necessariamente em cena, mas em um conjunto destas:

O estilo caracteristicamente calmo, discreto, sutil e manhoso de Buñuel nunca dramatiza mudanças de caráter dentro de uma determinada cena. A jornada pessoal de Séverine em e entre vários níveis de vida consciente, pré-consciente e inconsciente descreve um itinerário que se imprime em seu ser apenas da maneira mais ilusória, fantasiosa e inverificável.
— Adrian Martin

E são nessas arestas, nesses vislumbres, que vemos o surreal. Um sonho, afinal, nada mais é do que uma relação distorcida com o tempo e o espaço, onde vozes são modificadas e a dança de um anão representa o ápice do surrealismo. Não poderia um anão dançar na vida real? Claro, assim como poderia proferir, no último e já citado filme de Buñuel, a frase que rege seu Cinema: para o subconsciente, o acaso não existe.


Corpos que reaparecem

Falar sobre Cinema é falar sobre Vertigo mas, para alguns cineastas, parece que Vertigo é a única alternativa.

A obra prima de Hitchcock parece mesmo conter um pouco de muito. Elementos cênicos, momentos únicos, sensações abstratas, cada pequeno detalhe em um filme fabricado e construído (como já dizia Éric Rohmer) parece conter um mundo de interpretações e reflexões. Como se cada segundo de Vertigo tivesse feito nascer as mais diversas releituras, que podem ir desde um melodrama trágico (Trágica Obsessão, 1976) a uma ficção científica emo (Ex-Machina, 2015).

Mas, sem dúvidas, a maneira mais fácil de reconhecer um filme na matriz Vertiginosa é quando este se entrega ao conceito do doppelganger. Portanto, se a ideia central de Twin Peaks (de nome, Picos Gêmeos) já é remanescente do Cinema de Hitchcock, no momento em que uma cópia de Laura Palmer chega à cidade, mas agora com uma peruca morena, logo o cânone do filme mais assombroso de Hitchcock é invocado.

Ou melhor, não é como se não fossemos lembrados diariamente do motivo da série existir. Em cada final de episódio vemos o retrato de Laura, e ouvimos a dramática sessão de cordas que compõem seu tema. Como se, não importa o quanto tal episódio tenha se deliciado consigo mesmo, no final sempre voltamos ao mistério que assola série e cidade. E é uma pena que os produtores tenham forçado a descoberta do mistério, pois a impressão é que Lynch e Frost nunca puderam explorar de verdade a natureza da morte de Laura - ao menos, não como queriam.

Mas a chegada de Maddie catapulta o filme em direção ao maneirismo, a uma referência de si mesmo que afasta o drama na mesma medida que o tenta sentir de maneira mais potente - a ponto de que as sutilezas discutidas anteriormente chegam a extrapolar o limite da tela, afinal, a referência é tão clara como a falsidade da peruca de Sheryl Lee que, assim como tudo que envolve o trio adolescente, parece o ápice da pureza da série. Como se só por suas vozes afetadas, olhares sofridos e maneiras que precedem Crepúsculo o idealismo de Lynch viesse a vida. Com os três, fica sempre claro que estamos vendo atuações, que estamos vendo performances e não pessoas. Imagens e referências.

O que não diminui o impacto do assombro: um assombro porque estamos lidando com fantasmas, com desafios visíveis da morte, com uma incredulidade de quem vê na sua frente a figura de alguém que já morreu. Mas, olhando sob o véu, dessa vez vemos apenas a dura realidade de um mundo sem magia - lembremo-nos, Hitchcock centra o mal de seus filmes nos homens.

Se Vertigo é banhado em uma atmosfera de conto de fadas, a neblina e o embaço estão na mente do herói, não do diretor, e não afetam o realismo ordinário do tom.
— Éric Rohmer

Já Lynch faz algo um pouco mais complexo: quando o doutor Jacoby recebe uma mensagem do além e se depara com a visão de Laura (que não é Laura mas, no nosso mundo real, é), é possível sentir a sensação do homem de estar assistindo a algo fantasmagórico. O plano, subjetivo e na mão, escondido atrás de árvores e folhas, me parece um prenúncio para A Bruxa de Blair (1999) e, portanto, A Visita (2015), uma relação direta de olhar/câmera, que registra o mundo real ao passo que revela suas idiossincrasias. Tal qual o vídeo do piquenique, quando o olhar de Laura não apenas pede ajuda, mas revela a primeira pista para desvendar o mistério de sua morte - interessante notar que, a partir dessa cena e do próprio cadáver de Laura, que Lynch percebeu o potencial de Sheryl Lee como atriz. A realidade e a ficção, se misturando e influenciando.

Algo que, tenhamos em mente, Lynch iria ainda mais além com Estrada Perdida (1997) e Mulholland Drive (2001) - filmes que fabricam manchas metafísicas e discursam em sua integridade sobre a veracidade das imagens, sobre a relação do mundo do Cinema com o real. Filmes que se transformam enquanto acontecem, oferecendo respostas, mas se deliciando com as perguntas.

Acho curioso, portanto, que esse efeito tão poderoso (o de ver alguém morto, agora com vida) narrativa e visualmente seja limitado à poucos personagens. Por mais que seja um pequeno milagre que Lynch consiga extrair a reação coletiva da cidade sem nunca mostrá-la de verdade, a semelhança de Laura e Maddy é pouco explorada, resumida a uma paixonite de James (um legítimo adolescente que se apaixona uma vez por episódio) e à desilusão de Jacoby.

Exceto, claro, quando encontramos o corpo de Maddy igualmente embalado - o que poderia ser um momento mágico onde todos reveem Laura, logo se torna uma repetição da tragédia. Para Karl Marx, lembremos, a farsa vem na repetição. Twin Peaks, acelerada por seus produtores para revelar logo o segredo em seu centro, atinge seu mais obscuro, mais morto momento, quando revivemos aquele que iniciou tudo. A queda da torre, nunca filmada. Vemos apenas o corpo, que reapareceu, mas caiu de novo.


Um presente por dia

Uma percepção comum quando comparamos grandes diretores é de que versatilidade é um diferencial, como se explorar diferentes gêneros e narrativas contasse pontos nessa competição hipotética que tenta imitar os debates esportivos. A questão é que, dentro de seus métodos fechados e repetitivos, nomes como Ozu, Bresson, Sang-soo, Argento e, sim, Hitchcock, conseguem encontrar uma variedade de temas, elementos e de linguagem que pode não ser tão aparente quanto Kubrick fazer um filme de Horror seguido por um de Guerra e um Suspense Erótico (apesar de dois deles serem praticamente o mesmo filme).

E com Lynch não é diferente. Com a exceção do Sci-Fi em Duna (1984), todos seus projetos são suspenses surrealistas, filmes sobre realidades manchadas, protagonistas puros em meio a situações de corrupção natural. E embora Veludo Azul seja mais contido em forma do que Estrada Perdida, por exemplo, a combinação dos códigos apenas muda de lugar: entre eles, porém, o homem encontra espaço para explorar outros Cinemas. (Importante notar que, tendo um diretor diferente em cada episódio, estes estão sujeitos a suas próprias escolhas, mas a série como um todo me parece um projeto cinematográfico de Lynch)

Daí a vantagem do experimento, do Cidade Indiscreta, onde podemos ir de uma casa a outra, de um núcleo ao outro, passeando por Twin Peaks sem quase nunca de fato andar por ela. Nesse sentido, é como se a série nos oferecesse uma lupa, ala Show de Truman (1998), onde observa a tudo e a todos de perto.

Além de todos os filmes já mencionados anteriormente: em um quarto, podemos ver em plano fechado, e contínuo, a conversa de Ed e Norma após um sexo proibido. Uma espécie de Cenas de Um Casamento (1974) versão micro. Em uma beira de estrada, vemos James se envolver com Evelyn, em um clássico Film Noir que me lembrou Almas Perversas (1945). A cena do banco, no último episódio, é literalmente um filme de Buñuel, com a mesma explosão que encerra sua jornada no Cinema no já falado Aquele Obscuro Objeto do Desejo. E talvez nada mais Fordiano (homem que Lynch viveu em Os Fabelmans (2022)) do que o jogo de hierarquias da polícia, seguido por Harry esperando Cooper fielmente por horas - o momento que tem com Andy, então, é coisa de balançar.

E é uma pena imensa, das maiores da teledramaturgia norte-americana (e não me incomodo de usar a hipérbole mesmo não tendo assistido um centésimo do necessário para tal), que a série não tenha uma conclusão devida para cada um de seus personagens - embora isso, de certo modo, potencialize sua ideia contínua do além. O mais próximo disso talvez seja a conversa conciliadora de Bobby e de Major Briggs, um plano/contraplano de três minutos, de dois personagens histriônicos que dividem um momento sincero e transcendental. Talvez algo entre Rohmer, Ford e Ozu? O poder de uma conversa simples, após um encontro não planejado em um café constantemente visitado, de mudar tudo.

Desde o olhar brilhante de Cooper ao reagir a dois copos de café sendo oferecidos, a maravilhosa cena onde Shelly cura os problemas auditivos de Gordon, Twin Peaks parece existir sob o lema do agente. Esse presente pode ser uma torta, uma visita, um rosto novo, ou mesmo um abraço entre dois ex-”inimigos”.

Ao explorar diferentes Cinemas, nas mais variadas, específicas e únicas localizações, Twin Peaks permite a si mesma, e a quem a assiste, uma série de prazeres que vão desde o comovente momento onde um pai é confortado, a uma primeira vez mágica em um avião sem volta - talvez, o símbolo máximo de que o controle vai só até ali: as fronteiras imaginárias de uma cidade que nem existe.

E como um sopro, David Lynch termina sua primeira aventura por uma história sem fim. Claramente esperava poder ficar mais, mas se realidade e ficção se unem, é justamente em uma série onde podemos esperar pacientemente em um quarto vermelho, vendo um pequeno homem dançar, enquanto a menina antes embalada nos olha como se soubesse de coisas que jamais desconfiaríamos.

A partir dali, e por 25 anos, nosso presente foi esperar pacientemente no quarto vermelho.

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