Quem não entendeu Tropa de Elite?

Esse texto nasceu de um outro trabalho que escrevi aqui no outra hora chamado “Os 30 Melhores Filmes de Ação do Século 21 (até agora)”, que por sua vez nasceu de um processo de reflexão bem maior sobre cinema da minha parte, nascido precisamente no dia 14 de maio de 2023, dia seguinte a minha mudança da minha cidade natal Porto Alegre para São Paulo. Meu primeiro dia, e primeiro domingo, em uma cidade que não conhecia ninguém foi aproveitado para assistir os filmes, muito agradáveis, “Encontro Explosivo” (2010) e “Colateral” (2004) que foram ponto de partida para essa lista. Esse processo me fez ver um pouco menos que 100 filmes em dois meses, ler, refletir, discutir, rever e reler algumas coisas sobre cada um para poder ordená-los. Na hora de dar forma essa lista e escrever algumas linhas sobre cada um dos escolhidos, justamente o décimo sexto colocado era o que eu mais tinha o que dizer sobre. Segue então o texto, ou apêndice, que escrevi originalmente: Os 30 Melhores Filmes de Ação do Século 21 (até agora)


Quem viveu o Brasil em 2007 sabe o tamanho de “Tropa de Elite”. Um dos elementos importantes para entender o tamanho dos filmes de ação nesse século foi a pirataria de DVDs e acho talvez nenhuma outra produção tenha circulado tanto nesse meio quanto a história de Capitão Nascimento. Vindo do seu super aclamado documentário “Ônibus 174”, o diretor José Padilha dá continuidade a reflexão sobre o tema da violência policial e como ela afeta desigualmente a população brasileira. Mas, enquanto o seu documentário foi elogiado pela crítica no mundo todo, “Tropa de Elite” se tornou um grande sucesso de público, ganhou prêmios e até hoje causa divisão sobre sua ética.

Na época, de uma hora para outra, vi os pais dos meus amigos que não tinham nenhum interesse por cinema brasileiro assistindo dezenas de vezes as cópias compradas em camelôs, na escola passou a se brincar de “Tropa de Elite” que consistia em reencenar as cenas mais marcantes da obra, a trilha sonora tomou conta da vida urbana, especialmente o famoso “Rap das Armas” que qualquer criança sabia recitar de cabeça, assim como uma dúzia de trechos do roteiro. E só tem um motivo para isso: o filme cativou o subconsciente fascista da classe média, no momento em que essa mais crescia.

Claro que essa opinião não é nova. Na época o debate sobre a reação a “Tropa de Elite” foi acalorado, quando o filme ganhou o Urso de Ouro isso gerou uma longa discussão em outros países e essa polêmica foi apontada como o principal motivo para não ter sido escolhido para concorrer ao Oscar de Melhor filme estrangeiro. Mas isso é 50% da minha opinião sobre “Tropa de Elite” porque apesar de reconhecer as consequências dele, não consigo ignorar a maneira como Padilha conseguiu fazer as pessoas se conectarem com alguns dos seus sentimentos mais primitivos, se esses sentimentos são ruins (e são) o problema está na sociedade que cria uma classe média propensa ao fascismo e não no trabalho de um diretor. Aliás, nos dias de hoje acho que é tão raro uma peça de cinema ou de arte causar esse tipo de reação genuína e discussão acalorada e importante que olhando de 2023, o que “Tropa de Elite” fez em 2007 parece uma grande vantagem.

O que acho importante entender é: o que está lá? O que acontece nesses 120 minutos que teve tanto poder sobre o debate público? Um filme extremamente contraditório. O ritmo frenético, a narração de Wagner Moura, as cenas de ação espetaculares e a história, sobre um capitão do BOPE que quer encontrar um sucessor e dois amigos formados juntos pela academia de polícia que são os principais candidatos para a vaga. A contradição está em todos lados que enxergamos, Nascimento, Mathias e Neto todos se confrontam como sua luta pelo “bem” causa destruição e morte por onde passam e não conseguem conter essa violência a quando estão trabalhando de farda. Também está na maneira como Padilha pinta a polícia como uma instituição corrupta, mas “separa” o BOPE disso como se existisse ali uma virtude do bem que os outros agentes de repressão não têm. Aliás, é justamente por Padilha posicionar tanto Nascimento contra uma “corrupção” genérica (a principal preocupação da classe média) que legitimam a tortura, o assassinato e as ações dos personagens que Padilha pretendia criticar.

O diretor cria com bastante habiliade o ambiente para que essa opinião, supostamente oposta a sua, se concretize. Filmando o Capitão Nascimento como um herói (se não fosse, teria morrido no final do filme) e os traficantes e corruptos como grandes vilões, sem direito a mesma contradição do protagonista. A câmera realça a dificuldade, a velocidade, os desafios que os policias do BOPE enfrentam quando sobem nas favelas do Rio, mas não é capaz de procurar a perspectiva dos moradores. E Padilha sabe, como poucos diretores brasileiros, criar imagens que causam grande impacto, aliás, esse é o grande segredo para o sucesso de Tropa de Elite, não o que filma, mas como filma. A imagem granulada, os tons escuros, a câmera de mão, elas nos fazem lembrar do empenho de Nascimento frente a tantos obstáculos (inclusive entre ele e o espectador).

E é por isso que gosto de “Tropa de Elite”, é um filme contraditório sobre um personagem contraditório, que sabe construir em tela exatamente o que está dizendo. Um filme que não foi mal interpretado, que foi visto exatamente como Padilha o fez e por isso se tornou um catalisador do fascismo e da extrema-direita, mesmo que essa não fosse a intenção do diretor. Ao mesmo tempo, um filme que nos fez debater a violência policial porque a apresentou como ela é, a crueldade e a indiferença com que Padilha filma os moradores das favelas que o BOPE entra encontram paralelos na maneira como esses policiais enxergam essas mesmas pessoas.

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