Crítica | Spellbound
O CIDADE DOS SONHOS DE HITCHCOCK
Em filme subestimado, Hitchcock brinca de psicanálise enquanto discursa sobre a natureza dos sonhos
Conforme me preparo para rever Cidade Dos Sonhos (2001) após sete anos e mais de 1500 filmes, saio um pouco do planejamento anual (como sempre) e foco em assistir filmes que podem estar, de qualquer maneira, relacionados à obra prima de David Lynch.
Dos muito Hitchcockianos por aí, Lynch tem sua obsessão em Vertigo (1958) bem documentada e explícita em filmes como Estrada Perdida (1997), onde Patricia Arquette interpreta duas mulheres diferentes em uma trama cíclica e com traços oníricos. Em sua celebrada tese, que cito toda vez que falo sobre um dos muitos filmes influenciados pela obra prima de Hitchcock, o professor Luiz Carlos de Oliveira Jr. comenta sobre a semelhança das duas obras, tanto de um ponto de vista estrutural como estilístico - se o filme de Hitchcock representou uma mudança de paradigma para o Cinema Moderno, o de Lynch parece ser um prenúncio para o Cinema da virada do milênio.
Ainda assim, acredito que quando chegamos em Cidade dos Sonhos (2001), hajam outras referências espalhadas pela filmografia do britânico: da entidade que assombra a mansão de Rebecca (1940), à teia de crimes e intrigas que tantos de seus personagens se envolvem em filmes como Pacto Sinistro (1941), Janela Indiscreta (1954) e Intriga Internacional (1959) - algo que Lynch já havia abordado, também, com Veludo Azul (1986).
Eis que minha busca, após passar pela rede de espirais provocadas por Vertigo, chega em um filme que parece ao menos visitar a mesma terra de estranhezas que fez a carreira de Lynch. Que, por mais que pouco falado perante seus outros tantos clássicos, me deixou, assim como diz o título original, enfeitiçado.
NO IMPÉRIO DOS SONHOS
O Cinema de David Lynch mais do que flerta com um mundo de estranhezas. Desde sua estreia com Erasehead (1977), a sensação que tenho é que ele realmente enxerga essa estranheza no dia a dia, e faz filmes que habitem essa dimensão que pode ser tanto onírica como dolorosamente real. Daí seus personagens, ao contrário dos de Hitchcock, não necessariamente entram nesses mundos e eventualmente tentam sair, mas se lambuzam tanto de seus estranhos prazeres que passam a fazer parte dessa dimensão paralela.
No fim, um filme de Lynch é sobre essa idiossincrasia, sobre uma espécie de surrealismo impresso na maneira simples com que o diretor filma (evocando, também, Luis Buñuel), enquanto um de Hitchcock sempre acaba apontando para a revelação de alguma verdade chocante. Seja ela na forma de um assassinato, de uma doença, ou de uma farsa.
O que torna Quando Fala o Coração (1945) um caso curioso. Com seu título traduzido que parece tentar, em brasileiro, atentar para a história de amor envolvendo os personagens de Ingrid Bergman e Gregory Peck (que viveram um affair durante as filmagens), o longa obviamente precede em décadas o de Lynch, mas algumas semelhanças são óbvias demais para não serem mencionadas.
Em ambos os filmes, a protagonista é uma jovem doce que procura se firmar em um meio dominado por homens, e que tem sua vida transformada quando encontra uma pessoa misteriosa por quem se apaixona… e que sofre de uma grave perda de memória. Mas se em Spellbound (vou me referir ao filme assim), Ingrid Bergman interpreta uma psicanalista que se apaixona por um homem que diz ser um psicanalista, em Mulholland Drive (ver acima) Naomi Watts interpreta uma atriz que se envolve com uma atriz de verdade, mas que diz não saber quem é. Além disso, ambos os filmes são sobre pessoas que se encontram buscando algo (cura, sucesso) e tem de passear pelo mundo de sonhos, pelo mundo de estranhezas como meio de investigar as condições psicológicas de seus personagens, mesmo que um de maneira descarada e outro (em tese) escondida - afinal, é amplamente concordado o significado do mergulho no travesseiro em Mulholland Drive.
O que resulta em uma jornada inversa para ambos, e que escancara como essa diferença acaba se mostrando um ponto interessante na discussão entre os dois filmes em relação ao contexto onde foram lançados. O de Hitchcock, por mais tingido da mancha que sempre esteve presente no Cinema do britânico, é um produto do classicismo, com seu lançamento coincidido com o fim da segunda guerra e retratando um ideal de felicidade - ideal corrompido por um mundo cada vez mais obscuro, mas ainda atingível, desde que seus personagens joguem o jogo de encenações. Já o de Lynch é um produto precoce da pós-modernidade, reflexo de um mundo prestes a se tornar completamente conectado e onde estes ideais já existem no imaginário coletivo como sonhos impossíveis - e representados por uma indústria baseada na farsa.
Essas conexões - ou mesmo desconexões -, funcionam em torno da ideia técnica central de cada filme. A encenação, no filme de Hitchcock, é um produto do mal, ou um meio para se fazer o bem, enquanto no filme de Lynch a patologia que provoca a encenação (literalmente, a perda de memória) é quase como uma forma de nos salvar da realidade que os minutos finais do filme representa.
No de Hitchcock o sonho é meio, no de Lynch é ilusão. No de Hitchcock, os sonhos se curam no hospital psiquiátrico, no de Lynch, eles se extrapolam na cidade dos anjos.
UM VERTIGO ÀS AVESSAS
Tudo acaba em Vertigo, e cada filme de Hitchcock é ou uma tentativa frustrada, ou um comentário póstumo. E Spellbound, de certo modo, é como uma inversão de gêneros do filme de 58.
Assim como o personagem de James Stewart, a doutora Constance também tem uma condição patológica - não a vertigem, mas uma suposta frigidez. Porém, se a chegada de Judy é faz parte de um plano maquiavélico para abusar dessa fraqueza, a de John é uma possibilidade de cura. Já a construção dos dois personagens é iniciada por terceiros que, com descrições que vão do fascínio à preocupação, estabelecem o idealismo em torno de suas figuras: se Scottie ouve falar de Judy no famigerado gabinete de Galvin Ester, Constance ouve falar de John por meio de seus colegas, que constróem a ideia não de uma mulher misteriosa, mas de um homem com valores que a própria Constance admiraria.
O que resulta em uma cena divertida: poucas coisas, quando filmadas, provocam mais magnetismo do que Ingrid Bergman, e mesmo interpretando uma mulher que parece criar uma barreira entre si, a câmera e aqueles ao seu redor, é inevitável que ela tome conta de todas as cenas que participa. Hitchcock a enquadra como a doutora perfeita, tanto conceitual como espacialmente, centralizada no plano em sua mesa, e depois como um ponto de fuga no jantar dos psicanalistas. Compare os jantares em que ela está ou não presente: sozinhos, eles são um grupo qualquer, com ela, a atmosfera se transforma - a câmera faz um movimento que parece desviar dos homens e procurá-la.
E então essa criatura magnética, que não se deixa levar por nada nem ninguém, tem seu mundo completamente revirado quando o doutor Edwardes entra em cena, em uma caminhada precursora da feita por Kim Novak em Vertigo. Como se ele ali tomasse forma, caminhando em direção a câmera e chegando perto o suficiente para o ponto chave do plano, para a mancha Hitchcockiana, se tornar seu rosto.
Indo do médio ao close, a cena remete ao clássico Notorius (1943), onde o plano geral da mansão termina na chave na mão da própria Bergman. Mais a frente, Hitchcock o recriaria mais uma vez, dessa propondo uma desconstrução geral, naquele que pode ser considerado o plano central de toda sua carreira: o momento onde vemos Kim Novak pelo espelho, no restaurante. Mas se ambas estas cenas revelam a complexa rede de intrigas e psicologias que costuram seus respectivos filmes, a de Spellbound tem um fim mais simples, por assim dizer. Ao contrapor o rosto de Peck com o de Bergman, o título do filme se faz presente: encantada, vemos Constance se apaixonar por Edwardes à primeira vista. Na sua frente, um canvas perfeito, o auge da idealização.
Outro momento característico vem pouco depois, quando Edwardes convence Constance a deixar o hospital de lado por um momento, e levá-lo para passear nos arredores. Conversando sobre a psicologia da paixão enquanto caminham por uma paisagem idílica, os dois caminham em direção a uma espécie éden proibido, tão comum a Hitchcock e que em Vertigo toma forma na loja de flores. Este, com direito a uma roleta, na qual os dois se atrapalham por um segundo, e um arame farpado, do qual a doutora perfeita não hesita em trespassar, mesmo que isso signifique sua queda (literalmente). Embora o não mostrar da paisagem admirada por Constance soe como um deslize de montagem (ou decupagem), me lembro que estamos em um filme sobre a psique, sobre interiores, e o rosto radiante de Ingrid Bergman comunica tudo que a cena precisa.
O que é confirmado mais a frente, onde Spellbound mais uma vez espelha um tema central de Vertigo - determinada em provar a inocência de Edwardes, Constance começa a traçar um diagnóstico que explicaria tanto sua perda de memória como suas ações subsequentes a ela. Uma espécie de idealização psicanalista, onde a doutora tenta criar um perfil onde Edwardes (agora revelado como John) é inocente - tal qual Scottie faz com Madeleine, tentando recriar a mulher perfeita. Porém se em Vertigo isso demanda uma transformação material, em Spellbound ela é feita no campo da mente.
O BEIJO
Acho que já se tornou de conhecimento comum o conceito de que sonhos representam os medos, desejos e sentimentos mais profundos. Repetido a exaustão em incontáveis filmes, séries e programas de TV, essa teoria Freudiana já se fixou no imaginário popular como uma verdade supostamente misteriosa, como se saber disso denotasse qualquer tipo de conhecimento superior sobre um ato tão comum como respirar.
Lendo sobre o filme, e conhecendo a maneira com que Hitchcock aborda o processo, fica evidente que a natureza do sonho é algo que o diretor estudou, mas tem menos interesse em representar de maneira fidedigna aos trabalhos filosóficos e biológicos do que de modo a evocar as sensações e emoções que a arte pede. Como o cineasta que melhor entendeu o Cinema e seu público, Hitchcock elenca duas sequências que atende dos leigos aos especialistas, do amigo que fala pro outro que o sonho pirado tem a ver com sua paixão pela colega de trabalho, àqueles que leram Freud o suficiente para questionar cada palavra dita por estrelas de Hollywood interpretando psicanalistas.
A primeira dessas cenas é praticamente uma representação desse saber coletivo. Didática e reveladora do modus operandi da encenação Hitchcockiana, é resolvida em poucos planos e decupada milimetricamente: deitada em seu quarto, Constance se remexe na cama, sem conseguir dormir. A luz que entra pela janela é obstruída pelas listras da cortina, criando sombras que podem ser vistas como a grade de uma cela. Figura de linguagem recorrente para revelar personagens que estão “presos”, é no mínimo sugestivo que a prisão de Constance seja seu quarto escuro, e uma cama onde não consegue dormir - ou seja, sua inquietação a impede de entrar no mundo dos sonhos.
A mesma então se levanta e a câmera segue, interrompida por raccords que mostram mãos na maçaneta de um lado, e portas se abrindo do outro. O destino, a trilha exuberante de Miklós Rózsa entrega: ao subir uma escadaria, logo a câmera assume o ponto de vista da doutora e vemos, por baixo da porta, que a luz do quarto de Edwardes está acesa. Ao voltarmos para ela, a vemos em close-up, abalada. Constance, no entanto, vai ao cômodo do lado, uma biblioteca, onde pega um livro escrito pelo médico (em plano detalhe).
É interessante notar que, fora os momentos de plano/contraplano que miram nossa visão para macguffins e símbolos, sua perambulação pelos cômodos é, assim como de praxe na lógica de encenação Hitchcockiana, contínua, quase livre, a câmera tingida de uma curiosidade que beira o romântico a segue com uma sincronia cuidadosa. Nenhum diretor que eu assisti dominou tão bem este balanço, de um Cinema que prima pelo que acontece com tempo de cena (gestos, movimentos, olhares reativos) na mesma medida que prima pelo corte, pela justaposição e contraponto de signos para a formação de um código novo.
Ao entrar no quarto de Edwardes, Hitchcock sabe que é hora da espontaneidade se tornar simbolismo: constance o vê enquadrado por uma porta, e ele a vê do mesmo jeito, quase como um espectro.
Os dois se aproximam com profundidade, e não mais lateralidade: plano, contraplano, close, zoom. O beijo em que a cena culmina definitivamente se coloca como um dos mais significantes da história do Cinema, não apenas pela construção impecável até ali (a idealização, o amor à primeira vista, o primeiro encontro, a inquietação noturna, o tesão), mas por fazer uma ponte indescritivelmente genial pelas camadas que o filme propõe: com um fade, somos levados à imagem de quatro portas que se abrem, uma dentro da outra, como possibilidades infinitas que se apresentam a seus protagonistas, mas também para o filme. Em um beijo, vamos do romance terreno ao onírico, do melodrama, ao surrealismo.
O SONHO PERDIDO
Falar de sonhos, na arte, é falar de Salvador Dalí.
Dos maiores gênios e figuras proeminentes do século 21, o pintor espanhol foi comumente associado à Luis Buñuel durante suas respectivas carreiras, mas era apenas lógico que eventualmente colaborasse com seu equivalente do mundo inglesado. A convite de Hitchcock, Dalí dirigiu 20 minutos de uma sequência psicodélica que representa a mente conturbada de John, mas que, por conta de restrições do estúdio, foi reduzida a apenas dois minutos. O restante, perdido para sempre.
As implicações narrativas disso são imensuráveis. Perto da filmografia de Hitchcock é fácil, e até esperável que diversos grandes filmes acabem não tendo o reconhecimento devido, mas desconfio que 20 minutos em um mundo tão delirante como aquele e estaríamos falando de um filme tão memorável quanto as psicoses, vertigens e voyeurs. Seriam textos e textos examinando o simbolismo do cenário, de seus atores e movimentos, propondo não bem uma ressignificação, mas uma expansão luxuriante.
A TEORIA DA REDE
Embora já desse sinais em filmes anteriores, Spellbound me parece o primeiro filme onde Hitchcock aplica a si mesmo como a força regente não só da mise-en-scène, mas da própria diegese.
Vertigo, obviamente, é o auge disso, o filme que é Hitchcock em todas as suas arestas e personagens, e confunde a ficção com a identidade de seu artista. Em Disque M Para Matar (1954), ele faz um filme câmara sobre seu controle de cena. Em Janela Indiscreta (sim, os dois filmes em 1954), sobre como enxerga o mundo. Em Rope (1948), bota em prova sua máxima de que todos amam um bom assassinato, em um filme onde os protagonistas agem como seus agentes diretos. E embora este não pareça o caso em Spellbound, a ressignificação com a reviravolta final comprova este como o primeiro caso que coloco nesta teoria da rede (que fique claro, me faltam filmes em seu catálogo).
Com um deslize acidental e quase imperceptível, fruto da encenação livre e quase espontânea - traço que Buñuel apresenta em seus filmes pós anos 60, quando masterizou a relação do acaso com o surrealismo -, nos é revelado o culpado pela perda de memória de John. O tempo todo ali, mesmo sem ser visto, o vilão é a representação de Hitchcock dentro do próprio filme, tricotando como um suéter natalino outra obra prima (no caso, tanto o filme, como o crime).
Logo, é apenas entendível que Hitchcock reconheça isso dando um tiro no próprio rosto. Ou melhor dizendo… nos próprios olhos. Do vilão, dentro do filme. Seus, como diretor do filme. E nossos, como os últimos autores em uma rede de perspectivas que tem o fim dentro da cabeça de quem assiste.
Preciso agora citar a cantora Fergie: o cara morreu em 1980, mas viveu em 3080.