O Cinema de Eduardo Coutinho
Diretor trata as grandes questões humanas a partir de pequenos retratos.
A voz calma do homem que, por volta dos seus 50 anos, entregava o consumo habitual de cigarro rasga a imagem e pergunta para uma mulher em primeiro plano, que olha para o lado esquerdo da tela e é filmada por uma câmera de mão: “Posso perguntar uma coisa? Por que que a gente conversa e você não olha pra mim?". A pergunta analítica surge na metade de Edifício Master, e inaugura uma nova resposta mais profunda e mais auto-consciente de uma das moradoras do prédio, que senta em seu apartamento abraçada nas pernas enquanto dá seu depoimento.
Nesse texto pretendo analisar o documentário de 2002, mas para fazer isso quero antes entender como a trajetória do maior documentarista brasileiro chegou nesse filme.
Quero começar com sinceridade: para mim Eduardo Coutinho é o melhor diretor do cinema brasileiro de qualquer gênero. Seu trabalho apresenta avanços teóricos que em poucos lugares no mundo existiram no campo do documentário: enquanto vários diretores avançaram muito na forma da narrativa documental, Coutinho criou uma estética feita para transformar a maneira como aquilo que é filmado aparece em tela. Como funciona a linguagem desenvolvida por Coutinho? E como ela se conecta com a sua trajetória como cineasta e jornalista?
Até os anos 1970 a trajetória do diretor é semelhante a de vários dos colegas do Cinema Novo. Com ideais comunistas, integrou o CPC da UNE, onde se desenvolvia uma concepção de arte marxista, baseada nos ideias do Neorrealismo Italiano. Lá, trabalhou no aclamado Cinco Vezes Favela (1962) e, claro, começou seu filme mais importante: Cabra Marcado Para Morrer (1984). Depois do começo da ditadura foi roteirista de importantes películas dessa fase do cinema nacional como ABC do Amor (1967), Garota de Ipanema (1967) e Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976). É em 1975 quando começa a integrar a equipe do Globo Repórter (numa época em que era um prestigiado programa de jornalismo, não de viagens exóticas pelo mundo) e lá começa a ter a experiência documental tanto na estrutura do trabalho como na construção das pautas e finalmente na linguagem que aprofundaria ao longo dos anos.
Sua carreira muda mesmo quando, na reabertura democrática do país, encontra os negativos do longa que rodava em 1964, interrompido pelos militares ao darem o golpe de estado. Cabra Marcado Para Morrer é um dos filmes mais importantes da história do cinema do Brasil: o que já se vê aqui é o encontro do Coutinho cineasta comunista próximo do Cinema Novo e o do diretor do Globo Repórter, aliando as técnicas de reportagem com a história do líder camponês assassinado, sua família e seus companheiros no período de 20 anos de ditadura militar, ao fazer essas pessoas se confrontarem com as imagens registradas nos anos 60.
O que já fica bem definido nesse filme é o estabelecimento de uma regra como argumento “voltar 20 anos depois para a cidade de Sepé e procurar as pessoas envolvidas na filmagem original”. A narração de Ferreira Gular é predominante contando a história da produção, porém já vemos indícios da vida dos sujeitos em frente a câmera se tornando maior que a ideia apresentada pelo diretor originalmente. Aí já se distingue a linguagem de Coutinho do cinema-verdade que o inspirou, pois no momento em que confronta as pessoas no presente com o seu passado, as entrevistas se colocam em um movimento próprio estimulado pela própria câmera ligada e o diretor atrás dela.
O DISPOSITIVO
Após Cabra e O Fio da Memória (1991), que possui uma estética semelhante, Coutinho avança suas ideias de cinema para encontrar a linguagem pela qual vai ficar mais conhecido. Em 1999 lança o primeiro dos documentários com essa nova compreensão estética, Santo Forte, que foi bastante premiado no Brasil e já usa o dispositivo de outra maneira. Durante a visita do Papa ao Brasil em 1997, o diretor e sua equipe vão a favela Vila Parque da Cidade no Rio de Janeiro entrevistar os moradores sobre suas experiências religiosas. A partir daqui também o diretor adota a prática de pagar cachê para os entrevistados. Desse longa em diante, sua obra já não vai ter preocupação com a verdade enquanto conceito estético, e sim como a relação das entrevistas com o tema e com a câmera as filmando. Se tem encenação ou não já não interessa, a preocupação é como os depoimentos vão tratar sobre o tema definido.
A partir desse documentário o que interessa são como as subjetividades retratadas passam a costurar uma teia de narrativas que versam sobre os diversos temas pelos quais os sujeitos em tela são afetados. A violência, o desemprego, o alcoolismo, o machismo, o racismo. Isso se intensifica em Babilônia 2000 (2001) em que o diretor sobe com uma equipe ainda maior em duas favelas no bairro de Copacabana (Babilônia e Chapéu de Mangueira) para acompanhar os preparativos para a festa da virada do milênio. A equipe vai munida de perguntas como “você acha que alguma coisa vai mudar no novo milênio?” e “o que você ainda quer fazer nesse século?”.
Mais dois avanços são percebidos no desenvolvimento da carpintaria cinematográfica de Coutinho: ao final do filme temos um momento puramente lúdico, uma catarse depois de passar o dia colhendo depoimentos. Por algo como cinco minutos o diretor nos mostra a queima de fogos e os personagens na praia e no morro celebrando, abrindo mão de depoimentos e apenas concluindo a construção da ideia sobre a vida das pessoas que a celebram. A segunda é que já se vê a proposta de pedir para as pessoas procurarem o filme e não buscar personagens considerados protagonistas naquele contexto, ainda de maneira híbrida pois há depoimentos de lideranças comunitárias e personagens históricos do Morro da Babilônia, mas pela metade da história a equipe passa a filmar pessoas que se voluntariaram para ir a uma creche contar histórias depois de o rádio comunitário convocar.
Nessas duas obras já é possível observar a maneira como o público se torna personagem fundamental dos documentários, ao levar uma câmera para frente de uma pessoa e pedir para ela contar sua história de maneira livre, rapidamente surge a preocupação sobre as pessoas que assistirão, ao contrário do que ocorre quando há uma estrutura rígida com perguntas específicas. O dispositivo de Coutinho age tirando a universalidade dos temas escolhidos e dando para quem assiste a missão de criar as relações entre aquilo que é dito e interpretar a realidade social a partir de um ecossistema onde todos habitam. Ao criar essa regra fixa, objetiva de observação da realidade os filmes transitam livremente pelas histórias contadas e viram também personagens da narrativa. Além disso, a câmera cria imagens para completar a teia, em Santo Forte são evocativas as figuras de santos, orixás e diversos simbolos religiosos que as pessoas tem nas suas casas, em Babilônia 2000 se espera as pessoas mostrarem elementos específicos das suas casas, nesses momentos o enquadramento em primeiro plano é rompido pela intenção do diretor em preencher a sua construção.
“Edifício Master” (2002)
Nesse documentário e em “O princípio e o fim” (2005) que essa fase da obra de Eduardo Coutinho atinge seu ápice, dois longas em que já nem se usa de um evento ou momento histórico para estabelecer seu dispositivo, apenas se vai a um lugar com a câmera e deixa as pessoas falarem. A escolha é um prédio de classe média baixa há uma quadra da praia de Copacabana e essa é a única limitação para o documentário, no processo de produção a equipe do longa ficou três semanas morando no prédio para conhecer os moradores e na última semana realizaram as entrevistas que assistimos. Mais uma vez, a escolha pelo deslocamento da equipe até a casa das pessoas ao invés de convocar esses sujeitos para um ambiente onde a iluminação e as câmeras fossem mais adequadas é um dos pilares da maneira como Coutinho nos propõe entender sua história (isso apesar de ser comum até aqui na carreira do diretor muda nos últimos projetos).
Uma preocupação evidente do diretor é nos mostrar que os depoimentos e as histórias que estamos vendo foram previamente combinadas, agendadas e descobertas através de outros moradores, isso é fundamental para compreender o objetivo do seu cinema, não se trata de buscar pureza ou autenticidade apenas por uma suposta verdade. Aliás, um dos depoimentos mais famosos de “Edifício Master” é a menina que se intitula uma mentirosa verdadeira, claro, esse é um dos jeitos que o diretor escolhe para expandir a nossa capacidade de explorar a subjetividade do coletivo de pessoas que estamos assistindo. Há vários momentos em que não temos como saber qual a natureza das histórias que somos contados, desde passados gloriosos com grandes negócios e até uma performance com Frank Sinatra para uma missão da NASA (que é uma das minhas cenas favoritas da história do cinema) até um homem que dá seu depoimento no pequeno apartamento com uma diarista passando roupas e diversos blazers ao fundo.
Em outros momentos o diretor, como de costume, mostra os miúdos da realização do filme, sua equipe caminhando pelos corredores escuros e suas perguntas para as pessoas. O objetivo é sempre aprofundar a humanidade dos depoimentos, detalhar as sensações e explorar os motivos para que as pessoas escolham suas maneiras de nos contar suas histórias, como por exemplo o homem que se diz gago mas passa sua entrevista inteira sem gaguejar. Em três momentos vemos algo que é recorrente na obra do diretor e que até agora escondi nesse texto: suas entrevistas diversas vezes se tornam musicais, quase sempre a pedido do próprio Coutinho escutado pelo público para que seus sujeitos cantem. Na teoria do cinema (e do teatro) musical os personagens cantam quando suas emoções são muito intensas, e em “Edifício Master” acontece a engenharia reversa disso, se pede para os personagens cantarem canções que se relacionam a suas histórias para acentuar suas emoções na tela.
O que importa sempre para o cineasta Eduardo Coutinho é o ser humano, tema pelo qual ele demonstra um sentimento tão profundo e genuíno que só pode ser descrito como amor. No “Edifício Master” os sonhos, as histórias, as vontades dos seus sujeitos ocupam um espaço tão grande (e assim também é em outros dos seus projetos) que a costura dele é muito delicada apenas para alimentar as construções coletivas de um prédio com contradições, afinidades, histórias que às vezes se misturam umas com as outras, de pessoas que amam ou odeiam aquele lugar e foram morar lá por diversos motivos. O dispositivo evidencia a relação que cada um tem com o espaço e o diretor cria sínteses dos sentimentos provocados por isso, e é nessa mistura de histórias individuais e coletivas que se situa o cinema de Eduardo Coutinho, um cinema apaixonado pela humanidade dos seus personagens.