Crítica | Através do Aranhaverso

EM BUSCA DE SI MESMO

Em jornada pelo Multiverso, filme explora os aspectos humanos do super-herói mais popular do planeta


Das minhas memórias mais marcantes em uma sala de Cinema estão assistir o primeiro Homem-Aranha (2002) com a creche, e assistir Homem-Aranha: No Aranhaverso (2018) com meu irmão do meio e constatar, ao final da sessão, que o olhar maravilhado que tive aos seis anos, ele teve aos oito.

Por isso, acredito que sempre terei uma conexão afetiva com o herói, o que não me impede de desgostar profundamente (para não dizer desprezar) de todos os seus filmes que não os dirigidos por Raimi e agora pelos dois trios de diretores que realizaram estas duas animações.

Porém, gosto de dizer que nestes cinco anos “descobri” o Cinema, o que me tornou um notório desdenhador de filmes de boneco. Ainda assim, cumprindo nossa promessa de cinco anos atrás, decidi levar meus irmãos (agora o mais novo já tem condições de assistir) e dar mais uma chance ao Aranhaverso. E sim, os proibi de assistir com os amigos antes de assistir comigo, temos uma relação saudável.

E dessa vez, entre o encabulamento inibidor dos treze anos e a confusão dos onze com os conceitos do Multiverso, foi a vez de eles verem o irmão mais velho sair esbravejando, emocionado com o que havia acabado de assistir.

Agora, dias depois e com mais uma sessão (dessa vez no idioma original) na conta, tento descobrir o porquê.


DA TEIA AO TECIDO: AS PROPRIEDADES DA MATÉRIA MULTIVERSIONAL

A impressão que tenho é que existem tantas ideias em Através do Aranhaverso que essa acaba se tornando a ideia central do filme.

Não me refiro às muitas versões do herói, que podem até funcionar como piadas visuais e verbais mas nunca como meros dispositivos vazios ala Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022) e suas mãos de salsicha, mas sim às muitas ideias temáticas que habitam a narrativa - que não deixa de ser deliciosamente tradicional.

Perceba, a originalidade que tantos usam como elogio para falar do longa não se dá pela história, pelo que acontece em tela, e sim pela forma, pelo como acontece.

Assim como o primeiro, me parece um filme que não tenta criar uma estrutura exatamente complexa, e aqui não me refiro, novamente, à ciência ficcional, que faz o possível para basear a magia daquele(s) universo(s) nas leis que o(s) rege(m). Remetendo a Vingadores: Ultimato (2019), é um filme episódico (pra não dizer novelesco), e que aposta na força central de cada um desses segmentos, construindo uma espécie de mosaico que vai se encaixando em torno da progressão linear. O vilão só entrega seu potencial pra mais da metade do filme, e só entendemos direito pra onde vai a história perto do final, mas os momentos que nos marcam são justamente os isolados, quando os personagens parecem sentir o tempo e o mundo passando por eles, e temos o vislumbre de um filme de super-herói que, mesmo feito por computador, preza pela dramaturgia, pela humanidade de, e entre, seus personagens.

É a conversa de cabeça pra baixo, a conciliação com a mãe, um abraço no pai. Planos que ficam, por um segundo a mais se for preciso, para captar um olhar, uma reação, um suspiro. Um filme que, em meio a sequências de ação alucinantes e alucinógenas (e que parecem um baú do tesouro para aqueles que buscam easter eggs), encontra espaço para dar peso às suas imagens matriz. Nenhum confronto é vazio, nenhum conflito é frívolo, mesmo as piadas fazem parte da funcionalidade do filme (tudo que vem do Punk-Aranha vem bem). Cada detalhe é pensado, cada Aranha tem seu charme e universo próprios. Podemos parar e admirar um céu poente, e sentir apreensão com uma luta ou conversa. Um filme que usa a multimídia ao seu favor, e não se torna refém dela.

Essa cena dos quatro é das coisas mais palpáveis do ano, dá pra sentir o cringe em pais, filho e namorada.

É o que carrega e diferencia Através do Aranhaverso, um filme plenamente consciente de suas expectativas e da Cultura Pop que o cerca, de praticamente todos os outros filmes de super-herói que habitam a mesma dimensão - e que desde já deveriam se sentir envergonhados. A questão não é brincar com as referências, com os memes, com a pós-modernidade para arrancar risinhos dos fãs e criar hashtags, mas torná-los parte inerente da forma do filme, da matéria que o constitui.

Então, dos créditos iniciais, com os efeitos já inconfundíveis de distorção multiversal, aos balões e efeitos de fala que aparecem ao longo da projeção, Através do Aranhaverso se estabelece não só como um filme de linguagem própria (algo mais comum do que parece), mas como o único dessa leva de infantilização protegida pelo selo geek que assimila o mundo hiper-conectado à sua volta e faz a roda do Cinema girar com isso.

Mas o que mais me impressiona não é nem tornar essa ideia estilística em um filme de quase três horas que não se torna exaustivo (15 minutos das tentativas frustradas da Marvel ou do já mencionado filme dos Daniels me deram dor de cabeça), e sim como ela serve ao princípio que torna esse filme algo especial. Acima de tudo… ou melhor, por trás de tudo, por baixo desse filtro hiper-estilizado de cultura pop pulsando a cada segundo, Através do Aranhaverso é Cinema.


O BEIJO INVISÍVEL DA MULHER-ARANHA

Quando Miles pede ao tio que piche em torno dele na parede do metrô no primeiro longa, o resultado é uma sombra em meio a uma arte colorida. Um espaço que, com este contorno, indica a ausência de algo. Uma metáfora visual para um artista - e um guri - que tenta se encontrar em um mundo sem expectativas. Homem-Aranha: No Aranhaverso é um filme sobre Miles Morales tentando escrever a própria história em meio a tantas outras (cinco anos atrás, o gênero já estava saturado), em um universo onde ele não é o primeiro, mesmo que agora seja o único.

Na cena chave daquele filme, Miles pula de um prédio em direção ao chão, mas o plano é invertido. Para o Homem-Aranha, cair é se levantar. Indo de encontro a cidade, com seu uniforme estilizado e Air Jordans nos pés, ele ascende. O que seu Homem-Aranha precisava era aceitar para si o mundo ao seu redor, o mundo estilizado de uma Nova York ainda familiar a todos nós, mas que vibra com suas próprias regras. Era se transformar em não apenas um habitante, mas uma representação vívida daquela cidade - algo que não é tão bem trabalhado no gênero desde a trilogia de Sam Raimi.

Daí, me parece óbvio que este segundo não é sobre ele que, fora a saudade dos amigos que fez, parece estar levando bem a vida de Homem-Aranha. Li poucas coisas sobre o filme - afinal, quando falamos de algo tão popular é preciso que o tempo filtre o que é valioso e o que é marketing -, mas não encontrei nada constatando que Através do Aranhaverso é sobre Gwen Stacy.

Ela não apenas inicia o filme e o termina, mas tem seu arco dramático resolvido dentro de suas quase três horas, enquanto o de Miles fica aberto para a continuação - e nas mãos de Gwen, que passa por uma montanha russa de decisões e mudanças. A adolescência, afinal.

Já na primeira sequência, enquanto expressa sua inquietação ao destruir uma bateria, é ela quem produz as batidas que flutuam entre o diegético e o não, para logo então embarcar em uma caminhada solitária por sua própria Nova York - enquanto a de Miles é lisérgica e de superfícies instáveis, mas concretas, a de Gwen remete a uma pintura amórfica de tinta guache, que sempre reflete seu estado de espírito. O que permite que os diretores e animadores tenham liberdade de criar planos memoráveis, e diferentes do filme anterior: o preto e branco em torno do pai quando confronta a filha, e o abraço dos dois que re-colore o ambiente sendo os óbvios destaques.

O legal é como a estilização de ambos os universos conversa com cada personagem: enquanto o de Miles é opressivo com tantos estímulos, o de Gwen é impessoal, onde os ambientes se metamorfam uns nos outros e a única semelhança é o contorno branco que vaga por tudo, completado pelo capuz que a faz se camuflar. Não bem uma sombra, mas um fantasma.

Mas, de novo, o que separa este de filmes como Esquadrão Suicida (2016), Thor: Amor e Trovão (2022), Mulher Maravilha 1984 (2021), Liga da Justiça de Zack Snyder (2021) e Quantumania (2023), que tentaram pintar mundos extra-coloridos é que a estilização, aqui, segue ideias.

Os mundos ao redor de Miles e Gwen, interprete-os como quiser, me lembram da adolescência. Da dificuldade de se encontrar e se encaixar, da pluralidade de cores e possibilidades à frente e da apreensão de não corresponder a todas as expectativas. Na maioria das vezes, tudo que queremos, mesmo que não saibamos, é nos encontrar… o que em muitos casos significa também encontrar alguém. Nesta saga, isso representa a mistura não só de dois estilos distintos, mas da união de ideias que solidificam os dois filmes: dois jovens, com sonhos e anseios comuns, em busca de algo. A verossimilhança, então, abre espaço para a fantasia, pois, quando encontram, o outro está a um multiverso de distância.

E nada poderia simbolizar isso melhor do que o beijo que não ocorre. Miles, invisível, se posiciona atrás de Gwen tal qual Peter faz com Mary Jane na já clássica cena, lá em 2002. Ela se vira, mas não de susto, e sim contemplando como sua grande responsabilidade requer que, agora, o deixe para trás. Em um único plano, Através do Aranhaverso abraça o melodrama que tornou aquela trilogia tão especial, e alude para outra de suas ideias governantes.


UM TOQUE DE MAGIA

Pois é justamente a ausência, a falta do toque, do calor humano, que move as vidas desses personagens - e as nossas também. Os eventos canônicos nada mais são do que momentos de encontro (novas amizades e conexões, a mordida da aranha, o toque na gosma do Venom, as porradas) e desencontro (um olhar preocupado pela janela, a escolha de abdicar de uma vida normal que gera atrasos e ausências, a morte).

Curioso que o vilão do filme seja justamente alguém que não necessariamente impede o toque, mas expande suas possibilidades. De certa forma o Spot, graças à sua aparência horrenda, está emocionalmente isolado em seu mundo preto e branco (a antítese óbvia para um filme tão colorido), e seus poderes são apenas a representação física disso. Mais tarde, quando Miles encontra sua contraparte - esse, porém, marcado pela ausência do pai, da fantasia, da expectativa - é com o toque ensinado pelo tio que os dois se aproximam.

O que faz reverberar a força da encenação e a valorização da imagem que os diretores tomam como essencial. No Aranhaverso, a ausência do toque causa solidão, isolamento, sombras. A impessoalidade de um mundo sem esperança, sem cor, produz vultos, fantasmas. Já um abraço entre pai e filha é capaz de mudar as cores ao redor, de melhorar algo que parece impossível. A preocupação da mãe é mostrada em como ela arruma o filho, em como o mede com as mãos e percebe como cresceu.

E, finalmente, a uma das melhores cenas de 2023.

Uma das minhas expressões favoritas sobre Cinema, e que geralmente pertence a ciclos mais felizes e menos cult, é a tal movie magic. Momentos onde o Cinema bate, quando sentimos algo que só a arte pode proporcionar. Que este momento, neste filme, não seja em uma luta com centenas de Homem-Aranhas e sim em outro menor, com apenas dois, confirma o sucesso narrativo, estilístico e dramático das ideias propostas.

Provavelmente você lembra do seu primeiro encontro (seja ele planejado ou um produto do acaso), pois mesmo que não tenha sido um passeio por Nova York se balançando em teias, é um dos momentos mais marcantes na vida da maioria das pessoas - por motivos bons ou ruins. Aqui, por alguns breves minutos, Miles e Gwen se reconectam e, ao pararem no prédio mais alto da cidade, o que já dava pinta se transforma em pintura.

Com Nova York esplendorosa a sua frente, Gwen desafia a gravidade e caminha para baixo do mirante. A câmera, adotando o poder aracnídeo, a segue, enfeitiçada enquanto a música Pop no fundo sobe. Um plano então mostra Miles, centralizado em torno de um arco arquitetônico não muito diferente da parede do metrô, simetricamente em relação a ela, logo abaixo. O toque final para seu contorno antes vazio, a uma caminhada Aranha de distância.

E logo estão ali, lado a lado. Uma cena mais relacionável impossível, com o leve toque de estarem de cabeça para baixo. E as mãos se aproximam, e os olhares se cruzam, mas a insegurança os impede. Até que um movimento dela, que sabe mais do que ele, eterniza a imagem central deste filme. Um toque que significa tudo.


TUDO ACABA EM VERTIGO

Quem acompanha meus textos sabe da minha fascinação pelo cânone de Vertigo (1958), obra prima de Alfred Hitchcock que marca um ponto de mudança entre o clássico e o moderno no Cinema.

E como um defensor da teoria de Luiz Carlos Oliveira Jr., de que todo filme pós-Vertigo tem um pouco de Vertigo, tento mas falho miseravelmente em não relacionar o que assisto às teorias que compõem o filme de Hitchcock. Já falei sobre sua forma, sobre suas ideias, sobre suas narrativas, mas algo que Aranhaverso consegue (ou quase consegue), é ser o primeiro, ou único destes filmes, a apresentar algo próximo de uma teoria.

Ao abrir o caderno de Miles, Gwen vê diversos desenhos seus, diversas versões de uma única versão. Se o Rei do Crime queria uma diferente da sua família no primeiro filme (algo mais Hitchcockiano impossível), Miles quer percorrer o Multiverso para encontrar a única que importa.

Talvez esteja indo longe relacionando um filme de boneco com o mito de Plínio sobre o início da pintura - fábula Romana onde uma jovem desenha o contorno do amado na parede, em uma silhueta provocada pela luz de uma vela, quando este parte em uma longa jornada nunca especificada -, mas já que estamos aqui…

O filme parte de uma idealização, de uma paixão platônica, de uma memória que Miles tenta impregnar ao colocá-la no papel, ao colocá-la no mundo físico. Contornos, sombras, fantasmas. Como disse, o filme, mesmo quando sobre Miles, é sobre Gwen.

Veja, onde a grande maioria destes filmes de multiverso falham… ou melhor, onde a grande maioria destas superproduções que tentam emular a vida tecnológica falham, é ao não perceber que tudo isso, o todo, tem de entregar pro um.

O que me remete à dois outros grandes filmes, conectados em como discursam sobre o mundo conectado, e também por pertencerem a dois dos diretores contemporâneos que mais puxam de Hitchcock. Pulse (2001) e A Rede Social (2010) sucedem ao entender que a pluralidade da internet é, na verdade, assustadora. Que a possibilidade de conexão infinita não significa o "fim" da solidão. Que o Multiverso não é uma solução para os problemas em nossos mundos particulares (e se o efeito de desintegração de Guerra Infinita (2018) é visualmente mais próximo das aparições (e desaparecimentos) de Pulse, o glitch multiversional é uma alternativa não muito distante, e que também remete, horas, ao efeito da vertigem em Vertigo.)

Agora perceba que, mesmo com o Multiverso em risco - um risco real, e que expõe as individualidades de todos os envolvidos (de Miguel O'Hara ao Homem-Aranha Indiano) -, a sensação que impera no fim é nossa preocupação com o personagem que conhecemos cinco anos atrás. Que vimos crescer e começar a entender e preencher o vazio contornado na parede do metrô. E mesmo contra toda a lógica interna apresentada neste universo, que leva a sério esta lógica mesmo quando brinca e a subverte, dizendo que não há outro jeito se não aceitar os passos do destino - que aqui chamam de cânone -, escolhemos acreditar que quando aqueles portais se abrirem de novo, o Homem-Aranha vai dar um jeito.

A pluralidade de Através do Aranhaverso vem não como uma ideia superficial, mas como maneira de enfatizar a singularidade que torna cada um daqueles Aranhas - e de nós - tão único. O Multiverso aqui é, assim como os próprios poderes de aranha, uma metáfora para um menino e o mundo ao seu redor. O dele um pouco mais fantástico, mas não menos desafiador que o nosso.

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