Um Corpo que Renasce | O Vertigo de Christian Petzold

Uma análise sobre Phoenix, de Christian Petzold, e sua relação teórica com o clássico de Alfred Hitchcock


Uma frase, que hoje não mais sei quem proferiu, me parece cada vez mais verdadeira: todo grande diretor tem o seu Vertigo.

Em agosto de 2021, ainda em quarentena por conta da pandemia, me preparava para uma revisita essencial de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock, ao passo que iniciava a leitura da tese de doutorado de Luiz Carlos de Oliveira Jr. sobre a teoria artística do filme e, mais interessante ainda, sua influência onipresente no Cinema desde então.

Mas, lançada em 2015, a tese deixou escapar (entre tantos outros, pois a própria já se propõe como uma amostra inacabada) um filme que encaixaria como um vestido vermelho no corpo reconstruído de uma mulher que nunca caiu (o título brasileiro, por mais falho que seja, me ajuda enormemente quando escrevo sobre suas inúmeras cópias). No meu primeiro texto sobre Phoenix (2014), já havia referenciado o óbvio no título: tão claro para qualquer um que viu os dois filmes e refletiu o suficiente sobre cada um, o longa do cineasta Alemão, Christian Petzold, é praticamente uma releitura do clássico de Hitchcock, o qual o próprio referencia diretamente com uma ou outra cena ao longo da projeção.

Agora, re-assistindo ao filme (que entrou na MUBI) justamente quando termino de ler a tese, as ideias se clareiam em minha mente e vejo como Phoenix parece não apenas ser o Vertigo de Petzold, mas um filme que reproduz em sua totalidade a essência da matéria que Hitchcock transformou em arte. A seguir, tento enquadrá-lo na teoria de Oliveira Jr. (o qual divido o sobrenome e, por pouco, não o Jr. também), e me aproximo da constatação de que podemos estar diante de um jovem clássico.


A MUSA IMPOSSÍVEL

Parte central da teoria que cerca Vertigo reside no olhar, tanto físico como psicológico. Um jogo de perspectivas que, tão qual vê momentos passar, já começa a recorrer ao passado, à memória. O instante presente, no entanto, é o que permite essa reflexão tardia, e que acaba por diferenciar dois tipos de cineastas dos quais Godard se refere: aqueles que veem, e aqueles que miram.

O primeiro plano de Phoenix já traça um jogo de perspectivas e expectativas que situam o filme na rede de vertigens que tem o filme de Hitchcock como centro. Vemos a atriz alemã, Nina Kunzendorf, de perfil, analisando algo fora da tela. O filme que veremos a seguir, no entanto, é sobre a outra Nina, a qual logo irá contracenar e ceder o protagonismo central do plano. Trata-se de Nina Hoss, parceira recorrente de Christian Petzold e que, para todos os efeitos e para situarmos também a análise do filme no amplo de referências que ajudaram a construir o filme de Hitchcock, pode ser chamada de sua Musa.

As Musas, na mitologia Grega, tem sua origem contestada, mas são comumente atribuídas como filhas de Zeus e Mnemosyne, a antiga Deusa da memória. A origem do termo também é debatida, mas algumas correntes acreditam que seja uma adaptação de “ter em mente”, o que, obviamente, conversa com o entendimento contemporâneo de musa, ao passo que também elenca uma ligação com sua origem “biológica”. O artista, ao tentar reproduzir a imagem de sua musa em pintura ou escultura, tem de recorrer a memória, a olhares perdidos no passado. Estes, afetados pelo tempo, saudade, emoções e sensações que tentamos recriar, ao passo que cada nova lembrança cria uma nova cópia.

Ou, melhor dizendo, cria uma nova impressão. O que me leva a outro mito, dessa vez Romano, o qual Oliveira Jr. recita algumas vezes durante sua tese. Ao dissertar sobre a origem da pintura, Plínio alude a uma jovem Coríntia que, apaixonada por um jovem prestes a embarcar em uma longa jornada (em si, nunca explicitada), desenha na parede o contorno de sua sombra, proporcionada por uma lâmpada, logo antes deste partir. O que fica é uma impressão da impressão, um contorno de uma sombra, um borrão de matéria que possivelmente se relaciona mais com a memória do que com, neste caso, o muso. Fica a idealização, falta a pessoa.

Embora o tema das sombras retorne mais a frente em Phoenix, é possível dizer que o filme em si já nasce se assumindo como um resquício. Tanto em sua trama fechada - Nelly, uma sobrevivente do Holocausto, tem seu rosto desfigurado em um dos campos e precisa se reconstruir, renascer, para recuperar a própria vida de volta -, como no dispositivo que aproxima o filme da trama de Vertigo - ao reencontrar a esposa, Johnny não a reconhece, mas vê uma oportunidade de herdar uma herança enorme, mas para isso precisa “recriar” a esposa a partir da “estranha” que acaba de conhecer - como no simbolismo presente na relação entre Nina e o Holocausto - sobrevivida, mas com cicatrizes profundas.

De certo modo, há uma relação intrínseca também com outro filme de Hitchcock: Rebecca (1940) é sobre uma jovem recém casada com um viúvo abastado, mas, ao se mudar para sua mansão, começa a sentir a presença opressora da mulher que dá título ao filme. Tal qual uma assombração, mas que não se manifesta fisicamente, e sim por conta de uma memória eternizada em pessoas e lugar, Rebecca é um dos filmes mais importantes para se entender a busca Hitchcockiana.

Ao escalar Nina Hoss, que junto ao cineasta já havia construído uma iconografia instantaneamente relembrada na menção conjunta de seus nomes, Petzold evoca essa busca, a qual este próprio talvez nunca tenha alcançado. A musa impossível, a figura que assombrou o Cinema de Hitchcock por décadas, a qual o britânico tentava filmar com diferentes corpos, rostos e loiros, e a qual Petzold referenciaria diretamente em seu próximo filme, o seminal Em Trânsito (2018). Porém se a estrutura e a natureza evasiva dessa busca sem fim fazem daquele filme o seu mais desolador, em Phoenix a implacabilidade se dá justamente por seu objetivo parecer mais contornado.


O RASCUNHO E A OBRA PRIMA

Para um filme de relações tão complexas, Phoenix tem seus jogadores muito bem estabelecidos no tabuleiro. Desde a primeira cena, onde Nelly e Lene tem de passar por uma barricada de soldados norte-americanos, e a visão que temos é limitada, de dentro do carro (e mesmo dos ferimentos de Nelly, nunca revelados), a impressão é que Petzold controla de maneira firme a encenação. Se em Em Trânsito o objetivo é justamente jogar com uma estética de abandono, de estar em uma espécie de purgatório sem lugar, aqui fica claro que seus personagens estão “em casa”, mas não possuem liberdade - ou, para falar de outra maneira, não podem, sequer, ser eles mesmos.

Invertendo a lógica de um Janela Indiscreta (1954), onde seus protagonistas observam o mundo que se abre pela janela, em Phoenix tudo o que interessa está dentro do apartamento que, abaixo do subsolo, tem em sua linha de visão apenas os pés das pessoas. E embora a câmera nem tenha espaço para compreender todo o pequeno ambiente (trata-se de uma locação real, e não um cenário em estúdio) - tal qual Hitchcock faz em Disque M Para Matar (1954), com uma câmera presa ao teto - a impressão é que Nelly e seu marido, Johnny, jogam um jogo de xadrez que vai desde a maneira como se sentam a mesa, a seu próprio posicionamento dentro dos cômodos.

E embora a visão de Petzold seja diferente de Hitchcock de um ponto de vista pictorial - o mestre do suspense tinha uma afinidade maior por planos agudos e ângulos suspeitos, enquanto Petzold é mais clássico e balanceado - e sequencial - o Alemão parece dar mais tempo aos planos, ao passo que o Britânico encontrava efeitos com uma montagem mais dinâmica e ritmada (do qual cineastas como Brian de Palma e David Fincher basicamente construíram suas carreiras) -, logo fica claro que ele emula os duelos de olhares, gestos e intenções que marcaram tanto os filmes mencionados acima como outros como Pacto Sinistro (1941), Festim Diabólico (1948) e Psicose (1960).

Mais evidente, e semelhante, é seu controle formal sobre o próprio Cinema, a maneira como rege a encenação em meio a cenários delimitados. Pois se outros diretores tentaram recriar Vertigo subvertendo (talvez, libertando?) o formalismo opressivo de Hitchcock, Petzold assume seu papel na recorrência do mito de Pigmalião - enquanto Johnny tenta recriar a imagem perfeita, o diretor tenta recriar a obra perfeita.

O mito, que tem registros do período Helenista, mas foi recontado pelo poeta Romano Ovídio (43 AC) em Metamorfoses, traz Pigmalião como um escultor Chipreano que se apaixona por uma estátua que ele próprio esculpiu em Marfim. Ligando os pontos e unindo o mito do escultor ao da jovem apaixonada, temos praticamente a trama de Phoenix - um marido que tem de reconstruir a esposa a partir da memória, uma escultura baseada não em inspiração, mas na impressão que restou e que agora surge como musa. Que a musa seja, também, a escultura, é o toque que hoje podemos chamar de Hitchcockiano, mas que também tem uma longa história na temática do doppelganger (termo alemão para duplo) - e que requer uma análise própria.

A herança Pigmaliana no Cinema, no entanto, foi traçada de forma extensa na tese de Oliveira Jr., mas é importante notar que, desde seu lançamento, novos filmes parecem se encaixar nesse cânone infindável.

Do qual Phoenix é um dos poucos que não usa a tecnologia como um meio a modificar - quem sabe, pós-modernizar - o mito. Ela (2013) e Ex-Machina (2015), parecem se relacionar de maneira semelhante aos dois filmes de Petzold que discuti aqui. Respectivamente, enquanto o de Spike Jonze é sobre um mundo de movimentações livres, mas esguias, o de Alex Garland se limita a um único ambiente e traz a figura do controlador de maneira ativa. Por outro lado, em 2019, dois filmes com influências diretas do mito de Orfeu e Eurídice rejeitam a pós-modernidade e retornam ao passado. Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019) se passa no século 18 e mostra a paixão proibida de uma pintora e sua musa - a qual não sabe que está sendo pintada. Já o Brasileiro A Vida Invisível (2019) usa a estrutura familiar patriarcal brasileira como meio de separar duas irmãs que passam a vida tentando se reencontrar - e tem seu principal desencontro em uma cena que lembra o elusivo Em Trânsito.

A diferença de Phoenix para todos estes é que Petzold assume a releitura, tanto na dinâmica do casal, como em uma referência mais direta: quando a transformação está completa, Hoss caminha em direção a câmera assim como Kim Novak, nesta que é uma das cenas mais reproduzidas da história do Cinema (mesmo que seja “esquecida” pelas costumeiras listas sobre tais momentos). Assim, o longa tem seus objetivos plenamente delimitados - Petzold emula Hitchcock em seu controle formal, e Johnny assume a posição de James Stewart em Vertigo, ou de Pigmalião, o escultor.


PURGATÓRIO DE LUZ

O papel da luz no Cinema, ou melhor, na natureza, é de revelar. Um processo evolutivo que foi adaptado para a tecnologia cinematográfica, aproximando a câmera do olho humano - porém se a primeira registra, o segundo apenas observa.

O que nos leva a uma das principais características da sétima arte, a arte da imagem: a imortalidade. Quando registrada, uma imagem daquele jeito permanece para sempre, sem envelhecer (por mais que o papel da foto, a matéria, envelheça, o objeto fotografado permanece o mesmo), mas o que nossos olhos enxergam logo já é passado, delegado à memória e suas imperfeições. A luz, portanto, revela a superfície, mas não o que está sob ela.

Em uma sequência onírica, iniciada e terminada com feixes de luz que parecem levar Nelly a uma espécie de elevação sobrenatural, para não dizer etérea, a protagonista tem seu rosto reconstruído e se recupera em um hospital. Os movimentos lentos das atrizes, a câmera lenta Malickiana, a relação orgânica com o espaço e a natureza ornamentada dos jardins em torno do hospital remetem a Gritos e Sussurros (1972), de Ingmar Bergman, e suas personagens que parecem flutuar pela casa de paredes vermelhas sangue com suas camisolas brancas.

Uma análise mais complexa poderia relacionar também como os dois filmes lidam com a morte - uma espécie de parentesco pelo legado físico e mundano daquilo que passou para um plano desconhecido. Nina Hoss, porém, tem um papel ainda maior que o de Liv Ullman (por sua vez, a Musa de Bergman) naquele filme, ao assumir também o posto de Agnes (a irmã em estado terminal), agora tendo que lidar com o legado da própria morte. Mais uma vez evidenciando como a narrativa de Phoenix se delimita não só a um único cômodo, mas quase que a um único corpo.

Mas Petzold é um cineasta que, por mais melodramático e existencialista que possa ser, é também obcecado com manchas, com borrões impossíveis de se ignorar que alteram a cristalinidade das imagens - impedindo que a pureza de um Bergman seja atingida. Se filmes como Jericó (2008) evidenciam isso, Phoenix tem uma cena menor, que pode se confundir como um lamento mas nada mais é que um instinto patológico.

Quando Nelly, ainda com as bandagens que cobrem seu rosto, pega nas mãos uma antiga foto sua, ao mesmo tempo tentando lembrar como era e lamentando o que lhe ocorrera, parecemos estar diante de uma infinidade de filmes. Mas quando revela uma parte dobrada da foto e vemos seu marido (até então, desconhecido em um filme que fala muito pouco), somos transportados para o mundo de signos e significados de Blow Up (1966), de Michelangelo Antonioni.

Outro filme extensivamente analisado na tese de Oliveira Jr., Blow Up tem em sua trama um fotógrafo que acredita ter tirado fotos de um assasinato. Ao ficar obcecado com o possível registro, ele toca uma das imagens, como se o toque revelasse coisas que os olhos não pudessem. Ato repetido por Nelly aqui, e que voltaria a se repetir mais algumas vezes ao longo do filme - algo que Petzold responde de maneira desoladora: quando próximos, ou mesmo quando se abraçam e beijam, Phoenix não revela nada nem para os espectadores, nem para Nelly e Johnny. Se os olhares são afetados pelo engano, pela impossibilidade de se conhecer além da superfície revelada pela luz, o toque não produz nada exceto mais distância e incerteza.

De certa maneira, Phoenix é um filme sobre imagens, mas que deixa todos no escuro.


UM MUNDO EM RUÍNAS

Após passar pelo purgatório, onde não pode fazer nada senão esperar e tocar suas próprias memórias, Nelly tem seu rosto reconstruído com uma cirurgia que beira o fantástico. Conhecemos o rosto de Nina Hoss, e nada além dos curativos e da maquiagem que simula inchaços sugere que ela esteja sequer um pixel diferente do que era antes da desfiguração - e as fotos que mostram o rosto da atriz derrubam a ideia de que ela poderia estar diferente.

Mas o que para alguns poderia ser um "furo de roteiro", me parece ser uma decisão consciente. A lesão nada mais é do que um macguffin figurativo, uma representação que beira o lírico do impacto da guerra na Alemanha, e das cicatrizes físicas e emocionais que ficaram. A reconstrução de seu rosto, que poderia ser o mais próximo da representação física do mito de Pigmalião - uma escultura de carne e tecido - é apenas o ponto de partida, a abertura necessária para o filme que vem depois. Seu rosto é o registro, a imagem, vulnerável a re-significações no momento em que encontra os olhos de quem a toca.

Como já dizia Hitchcock, a emoção é mais importante do que a lógica, algo que pode ser aplicado também na impossibilidade de Johnny sequer cogitar - canonicamente, pois o filme nunca revela suas intenções ou pensamentos - que aquela pode, de fato, ser sua mulher. (Se ele sabe, ou não, discuto mais a frente).

O que importa em Phoenix, e no Cinema, é o uso dessas figuras, e é perceptível como Petzold alia o Cinema de manchas e assombrações de Hitchcock com o de culpa e redescobrimento emocional e identitário de Rainer Fassbinder. Um dos maiores nomes da Nova Onda do Cinema Alemão, marcada por uma geração que se via mergulhada em culpa, mesmo que “indireta”, pelos efeitos da Segunda Guerra, os filmes de Fassbinder preservavam os desdobramentos caseiros de Hitchcock - As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (e 1972) e Ali (1974) sendo dois exemplos indispensáveis.

Em cima disso, de todos os filmes de Petzold, Phoenix talvez seja o que mais se debruce sobre o legado cinematográfico de seu país natal.

Assim como apontado por Pablo Villaça, o uso de locações destruídas remete a filmes como Alemanha, Ano Zero (1948), onde os escombros refletem também o estado emocional daqueles que sobreviveram - um traço comum do Neo Realismo Italiano. Logo, quando o rosto reconstruído de Nelly é refletido em um espelho quebrado em meio ao que sobrou de um prédio, as figuras se aliam. O plano-espelho de Vertigo, quando Scottie vê Madeleine pela primeira vez, sem o glamour das cores marcantes e o enquadramento que parece colocá-los lado a lado, mas sim em um contra-plongée solitário, em meio a escuridão. O físico, o real, não mais importa, só o que se esconde - ou o que resta - sob a superfície revelada pela luz.

Que, nesta porção do filme, passa a ser afetada e obstruída. Voltando aos tempos de Expressionismo Alemão, paredes, escombros e prédios criam sombras agudas e disformes ao redor de personagens que agora parecem perambular pela noite como vultos em um cenário dantesco. Aí, a luz vermelha do bar que dá nome ao filme é a única cor que poderia tingir a superfície da imagem - se antes estávamos no purgatório, agora Nelly parece se esgueirar pelo inferno.

O que é curioso, pois se Vertigo conversava com uma dimensão fantasmagórica de forma mais direta - o livro no qual foi inspirado se chama Dos Mortos (1954) -, mesmo que sua estilização situe o filme no mundo real, Phoenix parece fazer o contrário: seu cenário narrativo é dolorosamente calcado na realidade, com elementos de linguagem sugerindo elementos do outro mundo. As luzes néon do bar, obviamente, remetendo ao hotel de Vertigo, palco da transformação de Judy, e do renascimento de Madeleine.

Porém o Fênix aqui é mais como o encontro dessas almas penadas, e menos o palco para a transformação de Nelly - a qual ocorre sob as deprimentes instalações do apartamento abaixo do nível da rua. Novamente, Hitchcock como um conto Neo Realista.


UM JOGO DE SIGNOS

David Fincher, outro diretor visivelmente influenciado por Alfred Hitchcock, mas que adapta seu formalismo para uma pós-modernidade detalhista e esquizofrênica, comentou sobre seu apreço pela perversão do filme, em como assume o ponto de vista de Hitchcock - de maneira semelhante ao que acontece com Phoenix e Petzold. A obra máxima (ou ao menos intencionada como tal) do diretor (os dois filmes) em um filme sobre a criação de uma obra impossível (as duas mulheres). Mas talvez o ponto mais fascinante do comentário de Fincher seja como acredita que é Judy quem tem a perspectiva mais interessante da história.

De certo modo, o que Petzold faz em Phoenix é justamente oferecer essa perspectiva, oferecer o outro lado do espelho, da Musa que se permite ser moldada aos desejos de seu escultor. O que me remete ao jogo de sombras que comentei no início - ao perambular pela noite, constantemente Nelly é vista como silhueta ou acompanhada de sua sombra. É ela quem vai em busca de Johnny, e não o contrário. É ela quem quer voltar a ser quem era e, para isso, precisa dele. A sombra, nesse sentido, é um signo, o símbolo máximo do que restou de uma mulher - e de um país -, uma impressão que vemos iluminada pelas luzes vermelhas não da lâmpada que a jovem coríntia usou como fonte, mas pelas cores do bar que dá título ao filme.

Nesse ponto, preciso trazer a famosa frase do filósofo alemão Karl Marx, que dá início a outro exercício de vertigem recente - o polarizado O Homem Duplicado (2013), de Dennis Villeneuve - e que resume não apenas a natureza formal deste filme (e daquele também), mas também narrativa.

A história tende a se repetir, primeiro como tragédia, e então como farsa.

Premeditando o movimento extremista que aconteceria nos anos subsequentes ao lançamento do filme, Phoenix é, como já esclarecido anteriormente, um filme de Christian Petzold, cineasta que une a experiência individual com a coletiva como poucos na contemporaneidade. Um filme que sabe que os horrores cometidos no holocausto não são únicos, ao mesmo tempo que sugere que sua protagonista pode apenas encontrar um misto de tragédia e farsa - toques e palavras falsos, sentimentos tão reais que doem como nenhum ferimento poderia. Aqui, vale a pena pontuar, uma das Musas, Melopmene, é hoje associada a tragédia.

Petzold ainda refere a frase uma outra vez antes de reunir o casal: quando Nelly encontra o Johnny errado. Mais adiante, quando se depara com o certo e este nem pestaneja em oferecer a ela o plano de herdar a herança da falecida esposa, ela não apenas aceita, mas vemos um plano crucial, onde sua sombra cresce na janela de vidro da amiga - essa, talvez ainda no espaço onírico do purgatório, pois sabe que fora dali há apenas o inferno? - até que abre a porta e se materializa. A impressão volta a ser real. Ou melhor, volta a ser farsa.

O que poderia ser uma inversão da fábula de Plínio, passa a dividir também elementos do Mito de Orfeu e Eurídice quando os dois finalmente iniciam a reconstrução de Nelly. O jogo de xadrez se intensifica a cada cena, a cada nova pista. Da caligrafia, à caminhada de Vertigo, fica perdido no olhar conturbado de Ronald Zehrfeld se Johnny está incrédulo demais para reconhecer a esposa, ou se recusa a reconhece-la para que sua traição não seja consumada como real - no mito, Orfeu tem de trazer Eurídice de volta do inferno, mas sem nunca olhar diretamente para ela, ou a amaldiçoaria para sempre.

Nina Hoss, das poucas atrizes vivas capazes de realizar algo dessa magnitude, entrega pistas e mais pistas físicas - olhares, sorrisos, movimentos desajeitados. Não conhecemos a Nelly de antes, mas é como se essas pistas passassem direto por Johnny e viessem a nós - falo por mim, mas a sensação é de agonia com a resiliência do sujeito em não reconhecer sinais tão claros. Logo, sua relação caminha para além da farsa, pois vemos não mais o plano, mas as emoções reprimidas de um ser que se recusa a aceitar o próprio erro, e de outro que está disposto a perdoar, mas que também se recusa em dizê-lo.

Hoss e Zehrfeld são, nesse sentido, fortalezas. Que brandam signos e sinais como bandeiras, mas que nunca permitem que vejamos para além daquilo que está ali, na imagem. Dois atores recorrentes de Petzold, que já trabalharam juntos e construíram com ele a iconografia que complementa o filme. Duas impressões, que ficaram, mas que não mais podem ser.


RECONSTRUINDO O PASSADO

Poucos símbolos são tão fortes no Cinema como o trem que chega - ou sai - da estação. Remetendo ao boato que se tornou mito, dos espectadores que fugiram quando o trem dos Lumière se aproximou da tela em 1896, a quantidade de filmes que usam trens como uma cartada final para separações ou reuniões emotivas é extensa a ponto de não precisar ser referenciada com exemplos individuais.

Petzold contextualiza o uso do trem de duas maneiras: como a possibilidade de um passado fantasma, disposto a ser esquecido por quem o viveu, e como a materialidade de um presente inescapável.

Quando Nelly se abraça em Johnny, enquanto este comanda a bicicleta, e sugere a ele uma história fictícia que o faria escapar de sua suposta traição, é como se Petzold filmasse a caminhada de Orfeu e Eurídice. Caísse ele em tentação, e aceitasse sua esposa de volta ali, em algum momento o peso da traição recairia sobre seus ombros. O curioso é que parecemos voltar ao sonho - de olhos fechados, o rosto de Nelly parece flutuar em um cenário falso, em um jornada ao passado do próprio Cinema. Ela, ali, sugere uma outra saída. Talvez, a saída do poeta, diria uma das protagonistas de Celine Sciamma em Retrato de Uma Jovem em Chamas, contada como uma versão fictícia e conciliadora da revelação que Judy faz em Vertigo (embora, lá, apenas para si mesma e para nós, os espectadores).

Inclusive, é como se por um breve momento o filme contemplasse o romantismo, o idealismo de uma história de amor bem resolvida, apenas para ter seu veículo de volta ao passado (a bicicleta, também tão central no Cinema, de ET (1982) ao Neo-realismo) jogado no chão. Afinal, após a guerra, não há mais essa possibilidade de se enamorar com o que poderia ter sido. Caminhamos, enfim, para a modernidade, a tal qual Vertigo representa a principal mudança de paradigma na história do Cinema.

A cena segue com um plano digno de um filme dos Irmãos Dardenne - cuja implacabilidade reside em uma encenação aparentemente livre, mas onde os corpos tem todos os seus movimentos ditados por sua relação com o outro. Determinado em continuar com seu plano até o final, Johnny descreve como deve ser o reencontro dos dois na plataforma de verdade - tudo isso, sobre trilhos de trem não mais utilizados, já parcialmente cobertos pela vegetação. Um caminho fantasma, para um passado impossível.

Mas caso não fosse claro, em Phoenix farsa e tragédia andam mais próximas do que na frase de Karl Marx, e talvez o plano mais clássico do filme seja aquele onde Nelly olha para um trem recém-chegado, à noite, e sua fumaça preenche o local - das cinzas, surge a Fênix. Ela está ali, distante, parte de uma paisagem verdadeira, mas que logo dará palco a farsa que confirma sua tragédia.

Quando Nelly desponta, como um fantasma de laranja em meio a dezenas de pessoas, não há espaço para emoção. Os planos, apesar de próximos, evocam a distância por meio do toque desajeitado, do jogo de encenações que agora não pertence mais apenas ao casal, mas a todos os seus amigos. O design de som tem papel também crucial, em isolar parcialmente os diálogos, mas sem nunca excluir o som externo - eles não precisam falar alto para fugir do burburinho, a impressão é que estão isolados do resto do mundo, em suas próprias misérias e reféns de seus próprios silêncios.

É tudo muito seco, dos abraços ao plano contraplano de Nelly cantando e todos sentados de maneira quase cômica, evocando o que seria um plano estático de Chabrol ou Buñuel. Mas logo ela começa a cantar, e a voz que era quase um grunhido acanhado durante boa parte da projeção, ganha um tom grave - Nina Hoss, aqui, se isola em relação a suas contemporâneas. Johnny toca o piano, até que não mais pode esconder, tanto quanto ela e sua marca dos campos de concentração que confirmam a ele que sua esposa nunca morreu.

O que, como vemos, não impede que isso a faça renascer. Como a Fênix do título, vestida de brasa e agora completa, ela caminha para fora, em direção a luz. Johnny a viu, mas, para um filme que já havia subvertido Plínio, é Orfeu quem fica para trás, no inferno das almas condenadas - seja por outros, ou por si próprios.

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Crítica | As Deusas (1972)