Crítica | As Deusas (1972)
HERANÇA PATOLÓGICA
Em drama psicológico, Khouri cria retrato esvaziado sobre a burguesia
É sempre um desafio tentar escrever qualquer coisa sobre diretores como Walter Hugo Khouri.
Um artista quase forasteiro em relação ao que ocorria no Brasil durante seus anos mais prolíficos, Khouri não deixou de filmar com o mesmo intuito que Glauber ou Sganzerla, mas na guerra (ou revelação) de classes proposta pelo Cinema Novo, optou por mostrar a parte de cima da sociedade. Tudo bem que em seu lento e patético processo de ruína social e psicológica, mas seu fascínio era tanto ou maior nas mansões, chácaras e vinícolas do que seus contemporâneos em registrar o “Brasil de verdade”.
De acordo com Donny Correia, em artigo sobre a carreira do diretor, essa mudança de foco não deixa de fazer parte da ideologia do movimento:
Enquanto o Cinema Novo examinou a condição humana pelas vistas das desigualdades de classe e seus efeitos no coletivo, Khouri preferiu se voltar para o paulistano cosmopolita de posses... O personagem típico do cineasta está alheio aos problemas coletivos porque não tem maiores preocupações além de seu hedonismo.
Formalmente ele também se diferenciava. Estudante de Hitchcock, ao optar por um formalismo mais detalhista e estilizado que seus contemporâneos, desenvolveu um Cinema de autoralidade impar, que não procurava usar a falta de recursos a seu favor, mas driblar ela para fazer uma espécie de “Cinema Europeu” em terras brasileiras - ou, o único Cinema que ele, nascido em São Paulo filho de pai Libanês e mãe Italiana, poderia fazer. Adepto da montagem e da mise-en-scène como forças motoras, Khouri criou filmes tão ricos em seus recursos de linguagem que é possível traçar diversas maneiras de se compreender cada um.
Compreender, não explicar, pois na pegada de Buñuel, Bergman, Antonioni, Lynch (e sem dever nada para nenhum deles), Khouri era mais interessado nas imagens que em seus significados. Em seu potencial, e não em seu fim. Em sua construção iconográfica e substancial, misturando teorias psicanalíticas (estudou filosofia na USP) à própria história imagética do Cinema, sem se preocupar se suas esquisitas tramas fazem qualquer sentido que não a abstração dentro dos contornos em um canvas.
Em uma de suas cenas mais brilhantes, As Deusas do título fazem sexo em meio a um cômodo rodeado de esculturas, estatuetas e quadros. O corte, como criador de sentido, vai delas para figuras deformadas e, eventualmente, para uma pintura de duas mulheres que, dentro de seus contornos cubistas e ao redor de suas bocas ressaltadas, possuem uma combinação inteligível de diferentes pinceladas. Um rosto é um rosto, sexo é sexo, mas em Khouri, tudo é também qualquer outro significado que possa ser atrelado.
O que, não é preciso dizer, o fez ser considerado um cineasta elitista por seus contemporâneos, embora seu Cinema conversasse com o público de maneira que o Novo, e até mesmo o Marginal, não conseguiam. De certa forma, Khouri usava a herança do Cinema Norte-Americano e Europeu como convite, para então expor o discreto charme da burguesia.
Para todos os efeitos, As Deusas tinha tudo que fazia de Khouri quem era. Situado em uma casa de campo isolada, onde uma mulher com problemas psicológicos vai com o marido para espairecer, mas acaba se envolvendo em um triângulo amoroso com sua psiquiatra, é um filme com o cenário perfeito para a dissertação entre o hedonismo e a decadência psicológica da burguesia brasileira.
Com uma combinação de planos abertos que estabelecem o local, com uma câmera sutil que por ele passeia com uma curiosidade tingida de voyeur, e com uma encenação que enfatiza o movimento como único motivo de se acreditar que aquelas pessoas pálidas estão vivas, Khouri logo instala uma atmosfera que flerta entre o onírico e o esquecido, entre o suspense e a comédia de costumes. Uma vegetação não muito podada, uma parede desbotada, lugares onde a luz não entra faz tempo e é possível quase sentir o cheiro do mofo - um verde, inclusive, bem Vertigo (1958), ainda mais quando este inunda cômodos com um aspecto quase neon.
E também a dimensão textual, a casa como herança de uma tia, ela própria enfadada e desestabilizada pela própria riqueza, e agora a passa como uma espécie de presente maldito, que geração a geração corrói a psique. Curiosamente, Kleber Mendonça Filho faz algo quase inverso com o apartamento de Aquarius (2016), este um local que guarda memórias e sensações aconchegantes, uma burguesia marcada não pela posse propositalmente isolada do resto do mundo, mas pela humanidade que jaz ainda em um lugar tão vivido.
JOGO DE APROXIMAÇÕES
O personagem típico do cineasta está alheio aos problemas coletivos porque não tem maiores preocupações além de seu hedonismo. Por outro lado, suas posses não o impedem de se ver num imenso buraco negro.
Há uma dicotomia latente entre os planos abertos, que isolam personagens na natureza, e os zooms que escancaram suas intenções cada vez mais marcadas pelo desejo, oriundo do niilismo que suas vidas provocam. Se a Pornochanchada era muitas vezes apenas uma maneira de chamar o público que carregava também uma herança identitária do Brasil, os filmes de Khouri entendem o sexo como a única coisa que resta para almas (em noites) vazias. Daí uma cena a três é enquadrada de modo que enfatize a carne, e não os seres. Mãos, costas, rostos, quase uma expressão abstrata do que o sexo agora significa para aquelas pessoas: não algo a dois, certo ou errado, mas a última maneira de sentirem algo.
É curioso também como seus personagens tendem a se relacionar com as árvores, como que se encontrassem no balançar das folhas, e na profunda e imóvel quietude do tronco, suficiente movimento para se sentirem vivos. Na maravilhosa cena do lago, Khouri parece conversar com o nascimento do Giallo (e seu olhar vulgarizado), mais especificamente Banho de Sangue (1971), ao mesmo tempo que referencia o par de pinturas de Botticelli. A Vênus Romana é diretamente relacionável, com sua figura que inspira beleza, desejo, fertilidade. Mas Primavera, e sua misteriosa combinação de criaturas, me sugere a existência deste lugar misterioso e reservado, quase mágico, onde as duas Deusas se encontram e podem existir juntas.
Engenhoso na mesma medida que prezava pelo estilo de seus filmes, os cortes afastam e aproximam tanto espaço como tempo. Uma mudança de cena por vezes avança a narrativa abruptamente, quase como se tendencias Hitchcockianas invadissem um filme do Apichatpong dirigido por Antonioni. A rigor nada acontece se não na mente de seus personagens, estas comunicadas por olhares antes de ações, mas tudo com um olhar atencioso para composições e mesmo enquadramentos que não deixam de dialogar com a corrupção do cotidiano de um Janela Indiscreta (1954). O ambiente, no entanto, é fechado, e em mais de uma instância um plano nos permite ver cada um do trio fazendo coisas distintas na casa - a mansão sendo o palco, e a câmera sendo nossa janela/binóculo.
E para todo o Cinema de luta de classes nada sutil que existe hoje no Brasil, parece haver faltado a classe de Khouri que, em um único plano, mostra a empregada doméstica enquadrada em uma janela no canto do quadro. Distante, trabalhando, uma figura até então inexistente e invisível.
O auge desse vai e vem é encontrado não em uma cena especifica, mas no uso de zooms ao longo do filme. Abundantes e tão reveladores e capazes de ressignificar a verdade da narrativa quanto aquele famoso em Ciúme (1994), o recurso é usado por Khouri de modo a abusar o máximo possível do Cinema. Claro, podemos nos aproximar de pinturas e esculturas, e ver cantos que a distância esconde sob as sombras, alterando assim a perspectiva sobre o todo. Mas a prática não deixa de ser uma escolha individual. Nos filmes de Khouri, tudo que vemos é a sintaxe de suas ideias, a montagem decupada milimetricamente, a imagem guiada por um viés tão sinistro e sedutor que a trilha de Rogério Duprat parece ser algo tão inerente que o silêncio daqueles personagens passa a ser tingido pelas trevas que cada vez mais mergulham. Vemos o que o diretor quer que vejamos, de longe ou perto, de fora ou dentro.
E o final Godardiano, com cores marcantes e conflitantes, pode até tentar, mas um filme como As Deusas é muito mais Chabrol. Ou melhor, Khouri.