Crítica | Phoenix

corpos que caem e renascem

Filme de Petzold re-mistifica clássico de Hitchcock em contexto histórico


Nas diferentes facções presentes na cinefilia brasileira, temos aqueles que:

  • tem um conhecimento básico (pra não dizer algo pior) de linguagem e falam apenas dos lançamentos com enfoque em super heróis

  • procuram conhecer Cinema e acompanham principalmente o circuito mainstream, mas com algum espaço para experimentalismo

  • procuram conhecer Cinema e tentam contrariar ao máximo o grupo anterior ao dar mais atenção ao experimentalismo

Algo divertido é justamente ver quais diretores se encaixam em quais grupos, e o Alemão, Christian Petzold, surge como uma preciosidade deste último.

Com um Cinema que usa o contexto histórico como cenário para filmes que emulam as emoções do clássico, Petzold, como disse Arthur Tuoto em sua crítica de Em Trânsito (2018), constantemente refilma O Corpo Que Cai (1958), de Hitchcock, porque é a única história possível mesmo depois de 60 anos de seu lançamento. Em Phoenix, como diz Pablo Villaça em sua crítica do filme, ele inverte o arco das personagens principais: enquanto Nelly tenta se aproximar de quem era, Judy tenta se afastar. E como diriam os membros do primeiro grupo, continue o texto para O FINAL EXPLICADO DE FÊNIX - com uma foto da personagem dos X-Men na capa.

Mas é curioso - e aqui me despeço das facções e seus líderes - que Petzold faça filmes que não deixam de se alinhar com o que a Globo gosta de transmitir em suas madrugadas, ou que o Oscar goste de premiar em Melhor Filme Estrangeiro, afinal, além de tratar diretamente da Segunda Guerra, Phoenix tem uma mulher interpretando uma personagem que interpreta a si mesma, o tipo de sacadinha que Hollywood adora (além de ter uma narrativa centrada em uma personagem que, por que não, se assemelha às de Una Mujer Fantastica (2017) e Ida (2013) vencedores recentes). Adicione à isso as referências ao próprio Cinema clássico feito nos Estados Unidos, e Petzold deveria ter uma penca de estatuetas no armário.

Não que o filme em si seja especialmente atraente para converter as massas, pois se Em Trânsito tinha uma força de movimento que tornava tudo mais energético, Phoenix preza pelo impacto sentido em minúcias: um olhar, um esboço de sorriso, uma expressão que nem bem sabemos decifrar. Sem necessitar de close-ups para extrair essas sutilezas, Petzold consegue nos fazer sentir tudo que o casal principal sente com seu simples, mas refinado jogo de plano-contraplano. É tudo muito aparente, muito revelador, sem jamais deixar de ser sugestivo. A câmera parece ter toda a delicadeza necessária para que a complexidade daquela relação não soe violenta em excesso - e mesmo a sendo, ele nos convida a sentir, não nos força a tal.

Sugerindo uma falta de segurança nas tomadas externas por meio de recursos típicos do próprio Hitchcock, ele aumenta sombras aqui, segue seus personagens até ali, chega próximo de uma sensação de suspense, mas tudo é sempre muito duro, muito real, remetendo ao próprio Neo-realismo e a filmes como Alemanha, Ano Zero (1948), que também associa os destroços deixados pela cidade com aqueles impregnados na mente dos sobreviventes. Já quando em um ambiente fechado, os personagens parecem encurralados um com o outro e por suas ações, reações e intenções, o que torna ainda mais admirável o fato de não julgarmos ou escolhermos lados, pois se a princípio pode parecer bonito de uma maneira ingênua o maravilhamento de Nelly em se parecer consigo mesma para o marido, é uma farsa que pode apenas resultar em dor. O mesmo pode ser dito dele, indecifrável, e de Nina, uma figura tão traumatizada com tudo que viveu que surge irredutível e distante, não por desdém e sim por medo.

Medo que, claramente, rege as emoções de todos: ao ter o rosto reconstruído (em um nível que mesmo hoje em 2021 não seria possível, é verdade), Nelly tem medo não apenas de se transformar e perder quem era antes, mas de não aceitar quem terá de ser agora. Um medo tão forte que supera a possível invulnerabilidade que a transformação pode lhe trazer, e que é apenas superado não com uma aceitação física, mas com a possibilidade de renascer como si mesma, como a fênix do título (e da boate na qual encontra o marido), em resolução que talvez revele a mensagem mais forte do filme: ninguém deveria de deixar de ser quem é por medo do que pode lhe acontecer. E a construção dessa ressureição é a força principal, vindo desde a caracterização visual, à linguagem corporal de alguém que tem de se esforçar para parecer consigo mesma sem mostrar que é.

O final de Phoenix, no entanto, me traz uma sensação agridoce que ainda não sei se dialoga com o restante. De certo modo, há um apreço por essa teatralidade que também vem de Hitchcock, algo mais na cara, como o nome da boate, o vestido vermelho e a própria cirurgia incrivelmente perfeita, e ela (a teatralidade) é usada como vestimenta da dor provocada por todo o contexto e que corrói o indivíduo, mas não seria este final menos trágico do que aquele anunciado? Nelly apenas cantar, revelando para o marido mais uma vez quem é, sem ele jamais consentir se sabe ou não, não é apenas uma sacada externa, do tipo que, olhem só, chamaríamos de diálogo (ou canto) de Oscar? E ela sai pela porta, mas por que? Não que respostas sejam necessárias, mas vide toda sua jornada, é um final que, ao menos para mim, parece… incerto.

Não que ele diminua todo o impacto de um filme que reforça a humanidade do Cinema de um dos melhores diretores em atividade, que não faz filmes “necessários”, mas inevitáveis.

9

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