Crítica | Sling - Clairo
Vocês já desgostaram de vocês mesmos?
Não há tom jocoso aqui. É uma pergunta séria. Vocês, leitores do Outra Hora e ouvintes de Sling, já se depararam com o simples fato de, num dia qualquer, perceber que seu eu atual traiu as expectativas do seu eu passado, enquanto mergulha em desesperança pro seu eu do futuro?
Clairo, em uma excelente entrevista à Rolling Stone, esclareceu que estava absolutamente decidida a largar a música para sempre. A pressão interna de trabalhar com o que ama e ainda estar infeliz acabou se tornando maçante. Seu cabelo literalmente começou a cair em consequência de má alimentação e falta de sono e sua família e amigos se distanciavam à medida que impressionar as pessoas erradas se tornava uma de suas prioridades. “Amoeba” é exatamente sobre isso, onde sua letra obscura se apoia sobre uma orgia instrumental energética (criando uma combinação absolutamente incrível). Conforme várias camadas sonoras são cimentadas a partir de acordes de piano e baixo contagiantes, ela desabafa embriaga, quase como se estivesse em uma festa falando com um desconhecido. “Você está feliz em residir no inferno, fingindo as coisas”? e “Podemos dizer que você tentou? Você não liga pra sua família”.
Mas assim como há o ponto de ruptura, sempre há algo para nos trazer de volta. No caso de Clairo, foi uma cachorrinha chamada Joanie (a que está em seu colo na capa do disco), nomeada em homenagem a Joni Mitchell, que foi capaz de reestruturar o jeito com que levava a vida antes da pandemia. Despertando um sentimento paternal, a cantora voltou pra casa de seus pais para passar a quarentena e buscou construir um ambiente calmo e seguro pro crescimento de Joanie. Por consequência, involuntariamente percebeu que se encaixava muito mais nesse estilo de viver. Começou a questionar como seria como mãe e o porquê de ter aberto mão desse ambiente familiar. Eis que Sling surgiu de alguém que estava prestes a largar tudo de mão. Impressionante o que um Pet pode fazer nossa vida. Falo isso por experiência própria. Recentemente adotei um cachorro e 2 dias depois estava falando pra minha namorada que estava pronto para ser pai.
Narrativamente falando, Clairo parece organizar cronologicamente os momentos de sua vida no LP. Just For Today é uma das faixas mais intimistas e emocionalmente carregadas do álbum (apenas o dedilhado do violão, violinos e harmonias vocais acompanham as palavras). Ela, que já havia abordado a questão do suicídio em Imunnity, com Alewife, traz aqui uma perspectiva particular mais crua e expositiva sobre o tópico (aliás, se você precisar de ajuda entre aqui https://www.cvv.org.br/). Quando ela canta “Since when did taking time take all my life? Mm-mm” no primeiro verso, antecedendo o refrão e o momento que expõe para sua mãe que conversou com a linha de prevenção a vida, sentimos o peso de cada sílaba. É uma letra de difícil digestão, onde quase nada pode ser dito, e Clairo sabe disso. Por isso, logo em seguida nos oferece uma faixa instrumental que leva consigo o nome de sua Cachorra. Eufórica, mas ainda assim caseira, simula a felicidade que Joanie trouxe consigo. Podemos ouvir até alguns barulhos engraçados do animal na mixagem. É reconfortante e talvez o momento mais importante do álbum, mesmo que seja tão singelo. Logo em seguida, como se estivesse pronta pra seguir em frente, Reaper - que nasce com uma alma velha - reflete sobre a possibilidade de ser mãe. Com forte influência Folk Setentista, a faixa tem os vocais de Lorde dando suporte a uma Clairo insegura, se deparando com a possibilidade de logo ser mãe e pairando sobre aquele meio termo onde sabe que logo vai acontecer, contudo não se sente preparada pra isso ainda.
Sling também fala sobre amor, apesar de não ser peça central do disco. De forma desiludida, diferente da explosão de cores oriundas de descobertas românticas em Immunity, a melodia de Little Changes flutua junto ao vácuo de uma relação fadada ao fracasso: “I see the end before it begins, No use to work, no use in anything”. E aqui talvez eu tenha me decepcionado um pouco. Apesar de amar a constante voz sussurrada de Clairo, o último refrão, extremamente poderoso, clama, conforme uma potente guitarra elétrica aparece sem dar aviso, por uma entrega vocal (e emocional) maior.
Por outro lado, Harbor é literalmente uma carta de despedida brutal e melancólica, com uma produção cinemática. Na verdade é um filme de 2 horas enxugado em preciosos 4 minutos. Não há uma estrutura definida, então podemos navegar sobre os cenários doloridos descritos por ela. “I'll let you win and I'll let you tie, The ribbon to my hair, Just so that we could come back to this” bate mais forte que o episódio mais emocionante da série “This Is Us”. A produção vai ganhando animosidade conforme Clairo entende que tem que se convencer a não amar mais aquela pessoa em prol de sua própria sanidade e acontece de forma orgânica, aqui sim entregando vocalmente o que o sentimentalismo dos arranjos esperava.
Bambi e Blouse são particularmente duas faixas favoritas da obra. A primeira abre o álbum evocando instrumentalmente um pouco da fase final dos Beatles com “Let It Be”. É tão singular que parece estar sempre em metamorfose. A produção de Jack Antonoff é soberba durante todas as músicas, mas aqui ele brinca com a nossa atenção. Instrumentos entram e saem a todo instante, e a própria voz de Clairo é usada como um. É literalmente a abertura perfeita para automaticamente atestar todo crescimento artístico dela nesse hiato de 2 anos. Já Blouse, contando novamente com Lorde, é talvez a letra mais poderosa do álbum, abordando a sexualização sofrida no meio da indústria musical e a incapacidade de mudar seu status quo. Querendo ser ouvida a todo custo, se depara fazendo concessões para isso, coisa que, infelizmente, muitas mulheres vão se relacionar.
Tudo sobre Sling soa imensuravelmente sincero.
Diferente de Immunity, que fazia qualquer coisa para ser ouvido, aqui Clairo parece demonstrar que não se importa com quantas pessoas a escutem, desde que se sinta confortável com o que está fazendo. Por conseguinte, isso nos deixa mais acomodados sob suas lindas melodias e também sob a produção irretocável de Antonoff. Aliás, os dois gravaram o álbum no estúdio Allaire, afastado de tudo e todos. Se olharem a foto do local vão perceber também que os sons traduzem a ambientação onde ganharam vida.