Crítica | De Olhos Bem Fechados
Stanley Kubrick é daqueles artistas que jamais nos permitirá aceitar sua morte.
Mesmo tendo 70 anos quando pariu, uma carreira de quase 50 e tendo realizado mais de uma mão cheia de clássicos (ainda mais em gêneros distintos), a sensação de que todos aqueles projetos engavetados nunca verão a luz do dia é algo que causa ansiedade e angústia em qualquer que, assim como eu, ame o seu Cinema. O fato de seu último filme soar não incompleto, mas como prelúdio de algo maior, me deixa ainda mais incomodado.
E não digo isso por haver qualquer indício de que haveria mais - ou até uma sequência - de “De Olhos Bem Fechados”, mas sim pelo que o filme é em si: um mistério metalinguístico que se desenrola e se aprofunda conforme avança, mas que soa cada vez mais simplório e raso por terminar da maneira estúpida como termina. Ao final, é como se estivesse assistindo ao ponto de partida para o segundo ato, como se ainda tivesse tanto para descobrir e, principalmente, acontecer (não li o livro, mas com uma consulta rápida se percebe que a premissa permanece, em suma, a mesma, o que enfraquece ainda mais minha teoria, mas divago:).
Apesar de não ser obcecado com aparências, ou com a obsessão do olhar - que toma conta dos melhores filmes de Hitchcock - é curioso como o filme nos convida a acreditar em significados escondidos quando, sob um olhar aprofundado, parece apenas evidenciar a superficialidade das relações humanas, sejam elas de cunho puramente sexual ou mesmo amoroso. Embora tudo possa parecer misterioso, o que vemos não são significados, mas significantes que tentamos significar, enquanto estes apenas fazem o que lhe convém (sexo, no caso).
Por isso, a cena do culto é uma das mais icônicas e fascinantes da carreira de Kubrick. Mesmo durando menos de 20 minutos, acaba tomando conta da percepção geral do filme: a maneira sensorial com que é apresentado, com o diretor usando seu controle da mise-en-scène tanto espacial, como temporalmente, para criar uma experiência quase transportadora de tão imersiva, desperta não apenas o voyeurismo, mas a curiosidade: quais as regras daquele lugar? Como alguém se candidata à uma “vaga”? Bill vai tentar entrar de maneira oficial? Quem são as pessoas por trás das máscaras?
As respostas nunca vem, e talvez não porque não existam, mas porque podem ser respondidas de maneira muito menos eloquente: não há regras, basta que seja rico e tarado e, caso Bill realmente quisesse, poderia pedir ao seu amigo que este o conseguiria um convite formal.
Aludindo ao próprio Alex DeLarge, Bill funciona como nossos olhos e ouvidos e, por isso, tendemos a temer por ele, mas não é como se o próprio também não sofresse por essa lupa reveladora de Kubrick. Se jamais podemos ver seu rosto sob a máscara enquanto mulheres e homens se entrelaçam (sarram, trepam, qualquer outra palavra serve) ao seu redor, é possível perceber como, apesar de ser um intruso, seu estado de mente encaixa perfeitamente naquele meio: a música sobe, os cômodos são revelados de forma lenta enquanto a ação ocorre de forma rápida, ele anda como um vulto maravilhado com tudo e, com uma ilusão de vulnerabilidade provocada pela máscara (também figurativa) que coloca, não percebe como é vigiado a todo o tempo. “Você corre perigo”, lhe diz uma mulher com os peitos de fora (peitos que, olhem só, revelam tanto), mas a curiosidade é sempre maior do que o medo e com certeza Bill não hesitaria em ir atrás da verdade sobre a peituda morta e sobre seu amigo Nick. E nós também não, é claro.
Tendo pontas “soltas” também envolvendo a prostituta Domino (que usa um nome falso) e a jovem filha do vendedor de fantasias (que ganha a vida com disfarces), “De Olhos Bem Fechados” surge como o filme onde Kubrick mais explora os lados obscuros da sexualidade, superando “Lolita” e “Laranja Mecânica”. Talvez não haja qualquer malícia na interação entre Bill e Domino, e esta talvez até mostre a verdadeira natureza do bom moço, que parece preso em um loop que lembra “Depois de Horas”, de Scorsese (um de seus filmes mais influentes, diga-se), porém sua falta de ação perante a situação na loja de fantasias é muito menos louvável. Em um momento de dar calafrios, Kubrick enfoca o rosto daquela menina, vendida pelo próprio pai, em outro tipo que Scorsese abordou no passado, na pele de Jodie Foster.
Mas se o filme em si é lembrado por essa sexualidade escancarada pelas aparências fajutas, a farsa que o rege é o casamento entre Bill e Alice. Sofrendo não apenas pelos impulsos sexuais que ambos tem - e que somos apresentados de maneira evidente na primeira festa -, mas por uma pose de bom casal que tentam manter juntos, sufocando qualquer tipo de paixão carnal para bancar o casal perfeito - o diálogo final resume isso. Cruise parece se divertir com a própria persona, com ser o centro das atenções, sejam elas positivas ou não, enquanto Kidman (sua esposa na época), assume uma personalidade quase periférica, reduzida, desconfortável. Na cena onde são apresentados, Kubrick desliza a câmera pelo banheiro de maneira simples, mexendo a câmera apenas o suficiente para sabermos que está lá, enquanto vemos ele se arrumando e ela urinando logo atrás. Nada menos sexy do que a intimidade.
O próprio apartamento, claustrofóbico com tetos baixos e longo o suficiente para que duas pessoas estejam em diferentes extremos, soa simples e desinteressante, mesmo que… aliás, ainda mais por Kubrick jogar com as cores para representar o atual estado do casal, tornando a dinâmica mais interessante do que os objetos que a produzem. E quando se deixam levar, seja por uma carícia ou pelo baseado, o resultado não é positivo. Ali eles estão nus, e quanto mais se abrem um com o outro, menos e menos parecem se entender porque, de certa maneira, deixaram de ser quem são para serem quem devem ser para o outro. Ele tenta ser compreensivo e bom provedor, ela tenta ser uma ótima mãe. Não precisa de muito mais do que uma memória (ala “Persona”) para incitar nela desejos adormecidos, e nele dúvidas quanto a própria masculinidade - talvez seja um exagero, mas a maneira sugestiva como a câmera desce para mostrar Bill segurando o papel para Nick escrever a senha da mansão é, por si só, um reforço de toda essa dúvida quanto à verdadeira natureza de Bill.
Talvez por tudo isso a cena final seja, de certa maneira, frustrante. Kubrick constrói um filme de quase três horas que parece precisar de mais cinco para ser finalizado de verdade, tanto em seus conceitos como em seus acontecimentos. Um sonho erótico transformado em pesadelo que surge como a simples necessidade de fugir da normalidade da vida cotidiana, e que se termina nos obrigando a ter certezas que não gostaríamos. Uma hora, todos temos de acordar, e de maneira nenhuma o que vivermos de olhos abertos vai ser mais atraente do que fazemos quando estes se fecham.