A indústria da música precisa do Grammy?
Eu amo premiações.
Me chame de antiquado, conservador, o que quiser, mas a ideia de que existem organizações voltadas a selecionar as melhores coisas é fascinante para mim, desde a infância. Especialmente quando se trata de arte: em um mundo de conteúdo infinito pós revolução digital, o papel de curadores, críticos, prêmios, se faz mais relevante do que nunca. Não porque o cânone contemporâneo vai dar conta de adereçar tudo aquilo que é bom ou não (não que alguém ache isso), mas porque, em tempos de saturação absoluta, precisamos desses recursos. Quem ama a arte, o cinema, a música, aprecia que existam organizações dedicadas a reconhecer o que merece destaque. Os vanguardistas, os inovadores, os artistas que mantém a roda da arte girando.
O cinema, por uma porção de razões, algumas mais coincidência e sorte do que outras, possui essa seara razoavelmente resolvida. Há um grande prêmio, o Oscar, de destaque mundial e que, apesar de seus problemas, aparenta fazer o mínimo para aparar arestas e evoluir com o tempo. Comercial demais para você? Teste o Critics Choice Awards, onde a seleção é mais voltada aos favoritos da crítica. Comercial de menos?! O Globo de Ouro não irá depecionar. Ainda temos o BAFTA, A Palma de Ouro, Cannes, e muitos outros.
é muito fácil assistir a uma premiação que reconhece o que merece ser reconhecido no cinema. Na música, hoje, é virtualmente impossível.
Como funcionam os Grammys? Ninguém sabe.
Claro, sabemos o básico, há três estágios de votação, um período de inscrições que beira o incompreensível, uma gama de categorias que flertam com o absurdo; uma data, um espetáculo, e uma porção de prêmios que hoje em dia, já não representam absolutamente nada. Mas, em nível fundamental, o Grammy é turvo. Pouco transparente, inconstante e pouco confiável. Ao menos, o Grammy do século XXI.
Isso porque, apesar de muito distante de perfeito, o Grammy do século XX não coleciona, em mais de 40 anos, o número de absurdos que os 23 anos que o Grammy do século XXI apresenta. No século passado, a premissa de “ser um prêmio voltado a qualidade, e não ao sucesso comercial” tem diversas evidências de sua execução: coletâneas, variedade de gêneros, presença de artistas menos conhecidos e até premiações estrangeiras - você sabia que João Gilberto venceu Álbum do Ano em 1965?
Mas de 2000 para cá, entender esse prêmio e seus critérios se tornou exponencialmente impossível. Como pode que uma jovem de 19 anos tenha vencido 1 Álbum do Ano, mas toda a história do hip-hop só tenha vencido 2? Como pode que Taylor Swift seja a maior vencedora da história do prêmio Álbum do Ano, com 4 gramofones, mas Beyoncé, a maior vencedora da história dos Grammys, com 32 gramofones, nunca tenha vencido a principal categoria?
Seria leviano fazer essa série de ponderações com base apenas em opiniões pessoais e subjetivas. Por isso, é pertinente trazer que essa sensação de perplexidade com a falta de sentido do Grammy é dividida de forma generalizada por amantes e estudantes da música, jornalistas, e críticos especializados. A melhor evidência dessa incompetência do prêmio em reconhecer aquilo que a crítica e a academia musical entendem como merecedor de reconhecimento, é comparando os vitoriosos do Grammy, com os vitoriosos dos agregadores de avaliações. Portais como albumoftheyear.org , rateyourmusic.com e a seleção Pazz&Jop realizam, anualmente, uma lista de melhores do ano, com base em avaliações do público e da crítica. Desde 2000, somente 3 dos álbuns que figuraram no topo das listas dos agregadores venceram a categoria principal do Grammy.
Parece que quando o Grammy acerta, e premia trabalhos que a indústria como um todo reverencia, é por sorte (ou azar), e não por escolha.
E o maior erro para a saúde cognitiva de um ser humano é tentar compreender qual é o critério dessa premiação. Porque após anos e anos acompanhando o Grammy, posso dizer com quase total convicção. Apesar do evidente racismo, não é apenas sobre raça. Não é mais sobre machismo e misoginia, se um dia foi. Não é apenas sobre sucesso comercial. Uma análise criteriosa dos vencedores dos Grammys das últimas décadas expõe uma realidade incontestável: não há critério. Não existe explicação lógica que explique ou justifique como a Recording Academy escolhe seus vencedores ao longo dos anos.
Da forma que vejo, existem duas possibilidades: ou o prêmio é uma roleta russa ou é corrupto. Fica a critério da inocência (ou fantasia) de cada um.
Sobre a importância de uma premiação séria
Como pontuei anteriormente, prêmios são importantes, especialmente na arte, e mais ainda numa era de saturação de conteúdo. Com todos os problemas da modernidade e da indústria musical contemporânea, o formato do álbum vem desbravando uma renascença discreta, mas contínua. A possibilidade de ouvir todo um disco sem pagar mais por isso via streaming está trazendo o álbum de volta para o coração da apreciação do público, e nunca houve momento tão propício para uma organização tirar proveito disso. Apresentar à audiência jovem, em especial, uma cerimônia que gera cultura, diálogo, apresenta novos artistas, gêneros, formas de apreciar e experienciar arte.
Em seu discurso de aceitação do prêmio Dr. Dre de Impacto Global, Jay-Z falou sobre a importância de “continuarmos aparecendo”. Continuarmos dando as caras, representando a mudança que queremos ver, onde quer que seja. Ano após ano, o Grammy decepciona e levanta dúvidas sobre sua credibilidade junto ao público, à crítica e aos artistas. Infelizmente, a música se vê cercada de prêmios voltados a adolescentes, números comerciais ou a nichos muito específicos, o que dá a impressão de que não há alternativa se apresentando. O grupo outrahora vem buscando formas de substituir o Grammy, mas, não parece ser uma tarefa muito fácil.
Ao que se vê, nos basta continuar questionando, ou protestando. Da maneira que lhe melhor convir.