Crítica | Phenomena

UM MUNDO QUE NÃO EXISTE

Em obra prima, dario argento ressignifica seu CINEMA


Por um Cinema mais inocente, por um Cinema que não existe.

Uma pergunta recorrente para aqueles que se propõem a comentar Cinema é se alguma vez a pessoa já "mudou de opinião" sobre algum filme. 

Hoje não é dia de falar especificamente sobre isso (vou guardar para alguma revisão que provoque alguma reavaliação), mas acho curioso como alguns respondem a pergunta com um inexplicável “vez que outra”. Ou melhor, quando lhe perguntam a opinião sobre filme X, a pessoa elenca um texto de anos atrás, como se sua contribuição para o discurso daquele filme X fosse encerrada nas mil e poucas palavras naquele pedaço de internet.

Hoje, refletindo não mais que o suficiente, acho impossível não responder tal pergunta de maneira afirmativa. Iria contra a relação natural com a arte sugerir que a experiência do eu do passado é a mesma que a do eu de agora, ainda mais quando falamos de pessoas que se propõem a pensar, a refletir o Cinema. Entre centenas, talvez milhares de filmes, passando por diferentes fases e pessoas da vida e, se espera, aumentando a bagagem histórica, teórica e técnica sobre a arte que se propôs a estudar, é impossível que os filmes não mudem constantemente conforme deles os lembramos.

Pois apesar de não possuir o mesmo nível de efemeridade da música (aí entra também o tipo de Cinema que se assiste: um plano de Apichatpong pode se assemelhar a um quadro e durar uma eternidade, um outro de um filme de ação pode passar em um mero instante e nem ser percebido), o Cinema é uma arte que refletimos sobre após o seu término, diferentemente de uma pintura, por exemplo. Uma obra de arte que existe na memória e não na fisicalidade do mundo. O filme é real apenas enquanto o assistimos, depois, ele se torna virtual.


Logo, quando assisto um novo filme de um diretor que já conheço bem, a resposta natural tem de ser uma nova ressignificação de tudo que assisti previamente. Não é apenas o todo, o antigo que entrega para o novo, mas o novo que oferece um melhor entendimento do antigo.

Eis que assisto os últimos dois dos quatro filmes que Argento dirigiu em 1980. E ao refletir (e protelar) antes de começar este texto, percebo que meu entendimento de seu Cinema e, mais especificamente, de Ópera (1987), muda conforme repasso minha experiência com Phenomena (1985), o filme que falarei hoje. Inclusive, mesmo tendo assistido aos dois em sequência, julgo necessitar mais uma assistida para falar de Tenebre (1982) - o outro que ele dirigiu nos anos 80 foi Inferno (1980), sequência de Suspiria (1977).

Ao reler meu texto sobre Ópera, inclusive, percebo que, embora ainda goste do filme "na mesma proporção", possivelmente tenha mudado a percepção sobre certos elementos e, mais importante, começado a me perguntar se não deixei passar coisas que em Phenomena me pregaram o olho.

Tal qual a cena chave em seu Pássaro das Plumas de Cristal (1970), os filmes de Argento (e da maioria dos cineastas, mas mais do Argento e dos bons) são como um assassinato que testemunhamos, mas do qual o choque não nos permite prestar atenção nos mínimos detalhes que podem resolver o caso. Não que haja qualquer resolução na arte, mas, de qualquer maneira, ficamos sempre com a memória.


O MUNDO QUE NÃO EXISTE

Ao falar sobre Tenebre, considerado por alguns seu "último grande filme", Argento comenta sobre como decupou diversas cenas com o intuito de situar o filme em um futuro próximo, de distâncias físicas e espaços vazios - não muito diferente do que fez Kubrick com Laranja Mecânica (1971). O elemento passou despercebido pela maioria, sendo que o filme em si não faz qualquer menção a esse mundo futurista.

De modo semelhante, talvez, ao fato de que Argento vai contra o que parece ser a percepção geral de seu Cinema - que muitos categorizam como maneirista. Assistindo a Tenebre, e depois a Phenomena, tive uma outra experiência, de um diretor que resolve suas cenas de maneira direta e clara, que se esbalda com o prazer gráfico de situações absurdas, mas que vive mais de descobrimentos do que de esgotamentos.

Em ambos os filmes, mas principalmente no primeiro, me veio então a sensação de já ter assistido aquele estilo de encenação (livre, mas fabricada), aquele tipo de composição (suave mas planejada), aquele uso de espaços (em alta profundidade de campo, permitindo uma interação sensível entre os elementos em cena). A ideia que se desdobrava na minha frente, então, era de um mundo acessível, mesmo que inexistente: um Cinema sem rodeios, mas que tendemos a ignorar. Não bem (ou não ainda) a tridimensionalidade de Mizoguchi, mas a sensibilidade de Éric Rohmer e seu mundo de espontaneidades superficiais, de encontros casuais que parecem obra do destino mas nada mais são que decisões artísticas. O estilo em Argento, agora, me parece algo muito mais entregue à nuance, ao classicismo, que ao impulso maneirista de um De Palma.

Argento menciona, e faz todo sentido, que o trabalho de Casper David Friedrich foi uma influência. Embora sua mise-en-scène não seja necessariamente tridimensional, tudo em cena é tangível.

Diversos elementos, portanto, passaram a dialogar com o Cinema de Éric Rohmer, um diretor contemporâneo de Argento que também sucedeu na fórmula de "fazer sempre o mesmo filme”.

A maneira como atores entram e saem de cena, a maneira como dialogam (assisti na dublagem em inglês, mas li por aí que a italiana é melhor), tudo passou a me remeter à sua série de comédias e provérbios, onde realizou, entre outras coisas, sua própria versão de Vertigo (1958) em A Mulher do Aviador (1981). E penso que seja óbvio, se não inevitável que cineastas, quando em busca de seu Hitchcockianismo próprio, joguem com a profundidade de campo, com a totalidade de suas mise-en-scènes, com o que há no campo e o que há fora dele.

Rohmer abusava mais dos pans, da suavidade da câmera, enquanto Argento obviamente prefere a edição, o plano-contraplano, o plano sequência. Versões extremas e que violam o classicismo, mas jamais quebram a parede do moderno. O tempo em Argento não se torna fragmentado pela imagem, mas sentido por ela.

Sua afinidade pelo olhar e pelo vidro já comentei em Ópera, mas estas violações agora me parecem ainda mais agudas e perceptíveis: a grua que invade o apartamento em Tenebre pode ser mais óbvia, mas as menções a um mundo que não existe em cena em Phenomena, e seus pequenos absurdos tornados naturais ecoam essa ideia. Quando a jovem Jennifer fala com o mordomo do pai pelo telefone, ou melhor, toda a sua vida antes de chegar ao convento na Suíça apenas não existe (tal como qualquer informação relevante sobre a jovem que abre a projeção). Ela acessa brevemente essa dimensão, mas é mais como uma ponta solta e fechada em si mesma, digressões das narrativas convencionais, meros dispositivos que, mais que qualquer estilização visual, subvertem os gêneros ao qual seus filmes pertencem.

Como comentado por Bruno Andrade, o Cinema de Argento é cheio dessas disparidades, desses "furos de roteiro", aos quais ele se refere como subversões de um gênero que, em tese, deveria buscar a lógica para situar o absurdo:

Essas incongruências que Argento cultiva de maneira tão sistemática - e por que não seria o caso de dizer que de maneira tão sofisticada? - liberam gêneros tão codificados como o suspense, o horror e o thriller da rigidez de algumas das suas convenções, incluindo aquela que diz que o absurdo, no interior de uma ficção de gênero, será composto da forma mais racional e lógica, definido e instalado sobre um fundo impecavelmente construído que a forma não fará mais que impregnar de álibis e circunstâncias as mais concretas, as mais escrupulosa e implacavelmente corroboráveis. 

E agora, voltando a associar isso a essa semelhança com Rohmer, os mundos que Argento filma são versões semelhantes ao nosso, mas dispõem desses pequenos portais que, em Rohmer, representavam o acaso, o absurdo do encontro e do desencontro, um voyeur fantasma e o fenômeno físico. Já em Argento, são portais que subvertem convenções que, por muito, o fizeram ser associado ao maneirismo, mas que nunca o alcançam. Em Phenomena, tudo ocorre com naturalidade, mesmo as coisas mais absurdas (de um enxame de moscas a uma macaca vingativa), propondo uma relação mais sincera e até transcendental com o filme.

O mundo de Argento, ao menos nesses três filmes, mas certamente em Phenomena, cativa por estar plenamente acessível… mesmo que não exista.


A CIÊNCIA E A INOCÊNCIA

Semelhante ao seu comentário sobre Tenebre se passar no futuro, Argento diz que, aos olhos atentos, Phenomena claramente se passa em um mundo onde o nazismo venceu a Segunda Guerra. De acordo com o próprio, todos naquele mundo esqueceram sobre esse episódio da humanidade, mas seus efeitos ainda são percebidos. Algo que, fora o eco no militarismo da professora, não é necessariamente evidente, mas que remete a ideia previamente discutida neste texto de um mundo que, em suma, não existe. 

E, ao contrário da ciência, do saber, há a inocência, a forma natural e inevitável da ignorância. 

É portanto curioso e genial que a protagonista seja uma jovem com o rosto tão inocente, mas ao mesmo tempo tão ciente, como o de Jennifer Connelly aos 14 anos de idade. Modelo por anos e já com participações em filmes grandes, Connelly tem a idade a favor da inocência, mas a vida e a carreira atípicas a favor da ciência da hostilidade do mundo ao redor.

A pureza da performance da atriz, provavelmente, é hostil demais aos espectadores acostumados com o histrionismo abobado dos anos 80 - que os levam a louvar filmes como Star Wars, De Volta Pro Futuro e Indiana Jones - ou ao naturalismo Hollywoodiano que busca uma ideia que vendem como verossimilhança. Assim como aqueles que com ela contracenam, e como a maioria dos atores em filmes de Argento, é como se estes ficassem entre um meio termo, em uma dimensão própria. É uma encenação que acredita nessa pureza, em se entregar ao que o filme pede, mas que também possui aquela auto-consciência do absurdo que é qualquer trama do diretor. 

Outros aspectos que parecem reforçar essa ideia estão na função do professor interpretado por Donald Pleasence, de tentar explicar de maneira crível o fenômeno que torna Jennifer diferente, ao passo que sua companheira símia é justamente a inocência, a pureza da natureza que vive por instinto. E ao mesclar essas duas forças, Jennifer é ao mesmo tempo alvo do filme e sua força propulsora: o próprio efeito visual das moscas (para além de todo o simbolismo) parece mais uma deterioração do celulóide, como se ela tivesse o poder de ressignificar toda a matéria do filme.

Mas Phenomena claramente escolhe um lado, e não é o da explicação, o da clínica, mas sim o da natureza, do campo aberto, do lago. Tal qual o amplamente incompreendido final de Ópera, a genialidade de Phenomena não está em como a história termina, no evento conspiratório descrito em imagens, mas na pureza da união e do equilíbrio com a natureza. Esse é o fenômeno, encontrar a magia desse mundo acessível apenas pelo naturalismo absurdo do Cinema de Dario Argento que, lá nos anos 80, já parecia saber para onde caminharíamos. 

Phenomena, portanto, parece um apelo. Por um Cinema mais inocente. Por um Cinema que não mais existe.

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