Crítica | Garota Infernal

menina malvada

Incompreendido filme de 2009 passa por necessária reavaliação


Garota Infernal é um caso fascinante de uma época curiosa. Lançado em 2009, quando a febre dos super-heróis e da verossimilhança ainda nao tinha pego embalo, e em um momento onde o digital já estava presente mas não havia mudado drasticamente a maneira como percebemos o mundo, o filme foi marketado como mais uma exploração do corpo de Megan Fox, após Transformers (2007) transformá-la em um ícone da beleza mundial.

É o tipo de coisa que, hoje, já não seria aceito. Entre Shiva Babys (2020) e Bodies Bodies Bodies (2022), mas passando por tantos outros, o sexo se tornou tabu inaceitável em uma "sociedade" que se diz woke mas caminha perigosamente ao conservadorismo. Em seus collants apertados, super-heróis empregam atores mais por seus rostos e corpos que por suas qualidades como interpretes, os sufocando em roupas de CGI que reprimem todo e qualquer traço de sexualidade. Andando para trás e fazendo um desserviço na cruzada secular por libertação, o jovem de hoje clama pelo fim das cenas de sexo, e temos uma das primeiras (se não a única) geração mais puritana que a anterior.

Igualmente preocupante, mas lógica quando por esse ponto de vista, é a esterilização do Cinema norte-americano, da rejeição de Shyamalan e da aclamação de Nolan, do fim da fantasia e da dominância da era da auto-consciência. Estilizar é um pecado tão grande quanto fetichizar, quanto utilizar o belo como forma. Veja, vivemos tempos tão míopes, tão preocupados em agendas e tão pouco em experiências e ideias, que o corpo semi-nu de uma atriz hoje é comumente considerado uma sexualização desnecessária, mais um exemplo mal sucedido do male-gaze. Cogitar que a nudez possa ser um comentário sobre si mesma está muito além da crise cognitiva que vivemos.

Eis que voltamos, então, ao filme de Karyn Kusama, diretora promissora que infelizmente não conseguiu se fixar no mercado norte-americano. Apesar de toda a tentativa de capitalizar em torno do corpo de Megan Fox, o curioso é que a fetichização acontece mais por conta do próprio carisma da atriz que por qualquer intenção do filme. Pelo contrário, a nudez (o filme passa longe disso, aliás, mas desconfio que se a Marvel mostrasse um beijo de língua daqueles teríamos meses de discussão e o código Hays seria oficialmente reimplantado) é, justamente, um comentário sócio-cultural que parece estar além de seu próprio tempo.

“Ela é o mal em figura de gente”

Não que Garota Infernal não seja, essencialmente, sobre Megan Fox, ela e sua beleza que combina Angelina Jolie com Betty Boop, um rosto plástico que sugere um vazio interior, mas uma presença de tela que parecia resgatar aquela magia das musas clássicas de Hollywood - as quais a Nova Hollywood fez questão de assassinar. Não acho nem absurdo associá-la a uma espécie de Marilyn Monroe contemporânea, uma atriz que conquistou o mundo com sua figura, mas justamente porque sabia usá-la. E claro, trocamos os vestidos luxuosos pelo guarda roupa que mistura Meninas Malvadas (2004) e um filme de Tim Burton, configurando junto à Fox uma imagem indissociável dessa tal época de transição.

No caso, nem dá pra saber se o filme tem essa autopercepção (o que o elevaria a níveis assombrosos), de representar um período tão único, mas é uma obra que certamente entende como a figura de Fox é central para o sucesso artístico de sua proposta.

Porque só uma atriz que abrace algo próximo do camp (quem dera Susan Sontag fosse tão abertamente influente como Laura Mulvey), que não se importe de ser extra, que não tenha ambições exceto se divertir com o material em mãos, poderia fazer de Garota Infernal o filme que é: uma aventura De Palmiana - e, portanto, maneirista - na aurora da verossimilhança que destruiria o blockbuster norte-americano. Kusama inclusive faz algo que saiu de moda nos Estados Unidos, palavra que nem mesmo tradução tem para o inglês e que talvez explique o motivo de seu abandono. Decupado a modo de extrair esse potencial imagético de Fox, o filme transforma sua imagem em ícone, seus acontecimentos em esgotamentos, em comentários sobre si mesmos.

Em seus histrionismos, em sua brincadeira de gênero, em seus exageros que vão do beijo lésbico hiper sexualizado às macabras cenas de gore que assumem um tom cômico por sombras, ângulos e diálogos que desviam do potencial de choque das imagens, é um filme que se distância tanto de seus contemporâneos que parece mesmo um alienígena. Enquanto Nolan é um estudioso que, por mais que não confesse, baseia seus filmes em sua bagagem cinematográfica (seu silêncio em relação a Paprika (2006) é um atestado de sua arrogância), os universos que surgiram a partir dele parecem reduzir todo o Cinema que veio antes a meros ovos de páscoa.

Garota Infernal remete a uma infinidade de títulos, e dois que assisti recentemente chamam muito a atenção. Um giallo como Vampyros Lesbos (1971), que por mais sensorial e anti-narrativo que seja, usa da imagem sexualizada de uma jovem como veículo de sua forma, e um terror cósmico como Lifeforce (1985), que se aproxima ainda mais (porém com a liberdade dos anos 80 de mostrar nudez) do filme de Kusama ao trazer uma protagonista que usa sua beleza para sugar a energia dos homens que se cercam em sua volta. Além de, é claro, aplicar a roupagem pop do filme protagonizado por Lindsey Lohan (a Megan Fox original) na Carrie (1976) de De Palma. O prazer visual desses filmes vem não do que a juventude de hoje julga sexualidade desnecessária (como se o mundo não fosse baseado em sexo), mas na forma, na estilização da imagem, em sua plastificação, e não na captura gráfica do corpo nu (o que configuraria pornografia).

Daí o que década e meia atrás parecia cringe, hoje já se solidificou como a apropriação de uma época, de uma sensação, transformadas e resumidas no ícone que é, como o hoje ainda melhor título norte-americano diz, o corpo de Jennifer

Pós tempos de me too, Garota Infernal soa, década e meia depois, como um comentário delicioso sobre tudo que aconteceu no meio tempo.

8

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