Crítica | O Homem de Palha

O ESTRANGEIRO E O FOLCLORE

Clássico dos anos 70 mostra como filmar o estranho


O mal do zinéfilo (caso tenham usado a expressão antes, desconheço, então é minha) é achar que tudo que assiste é o melhor, o maior e, o pior de tudo, o primeiro.

São mais de 120 anos de história do Cinema, outras centenas de teatro, literatura, cânticos, histórias. O que tinha de original já por aí está, o que veio depois foram reformulações, releituras, re-interpretações. Os tempos mudam, e assim muda a forma. E claro, a linguagem, mas o cerne da narrativa, da história humana, é a mesma faz um bom tempo.

Logo, o ano é 2019 e assistir Midsommar parece uma porta para uma outra dimensão, uma dimensão de estranheza, onde a clareza permitida pelos campos ensolarados ajuda a revelar o macabro em uma comunidade a nós, espectadores, estrangeira.

A ideia é ótima. A premissa por si só, também. Mas como a introdução deste texto indica, de original está apenas a experiência individual do desavisado. E para não precisar ir até o início do Cinema, onde esse fascínio pelo "uncanny" já se mostrava inevitável, falemos de O Homem de Palha, que completa 50 anos em 2023 e parece estar experienciando uma espécie de renascimento.


UM LUGAR DIFERENTE

Um oficial conservador chega em uma ilha para investigar a morte de uma garota. Não há, de início, qualquer investimento emocional ou dramático para além de um crime - estes, a coisa mais comum do Cinema de horror. Não há um motivo para "simpatizar" com o protagonista, exceto por seus modos ofendidos com tudo que não são freiras. O que abrilhanta o filme, é que não há também qualquer intenção de capitalizar na tensão.

Se ele naquela terra é estrangeiro, nós o somos também, mas o filme não comunica isso da maneira "tradicional" que estaríamos acostumados (uma trilha sonora sinistra, ângulos escusos, olhares desconfiados), mas com uma naturalidade que situa o filme na comunidade que mostra. Os habitantes o olham com curiosidade, mas para eles aquilo tudo é normal. Estes não agem como criaturas que sabem coisas que não sabemos, mas como seres que seguem vivendo suas vidas até que um estranho começa a fazer perguntas.

Veja, não é um filme (ou um texto) que pede pelo realismo, pelo contrário: com interludes musicais e sequências de nudez e depravação com a mesma naturalidade de um coral de crianças, O Homem de Palha é estranho em sua forma, porque adota os costumes de seu universo nela. Uma atmosfera jocosa e leve, por mais que também reservada em suas peculiaridades. Há sim algo que aquelas pessoas escondem, mas não há em todos?

E é um trabalho primoroso de encenação, de suspender a descrença daqueles atores para que possamos suspender a nossa. Um mundo florido, ensolarado, onde todos parecem viver alegremente, mas o protagonista quer insistir que há algo de errado (e nós, de certa forma, fazemos o mesmo, mesmo não sendo convidados a tal). É tudo muito claro, o ritmo é como uma canção folk, a sensação é de pertencimento. 

A mancha Hitchcockiana, portanto, não é o desaparecimento da menina (inclusive, talvez não exista Cinema MENOS Hitchcockiano que o Britânico e sua falta de nuances), mas o aparecimento do oficial. 

Meu problema com Midsommar, portanto, é achar que ao filmar a estranheza daquela comunidade com as técnicas do horror elevado de hoje se atinge qualquer potência, quando na verdade isso apenas costura dois filmes que não se pertencem. Claro, a tensão funciona em primeiro grau, mas qualquer reflexão revela as cicatrizes em sua ideia.

O Homem de Palha é folk em sua forma. O oficial é um intruso em uma terra feliz, e o filme que assistimos jamais julga ou estranha aquela terra. O estranho é ele. Os estranhos, somos nós.

9

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