CRÍTICA | O Assassino

olhar treinado

Em filme auto-consciente, david fincher está de volta


Quando David Fincher anunciou que seu então novo filme seria baseado no livro do pai sobre a escritura do roteiro de Cidadão Kane (1941), animação não foi exatamente a sensação que surgiu entre seus admiradores.

Dos poucos diretores norte-americanos de hoje que parece agradar, em maior ou menor grau, a todos os nichos - sua mãe que gosta de ver programas de assassinato dublados porcamente em português e seu irmão que prefere um noir dos anos 40 a qualquer porcaria que a Marvel esteja lançando -, Fincher encontrou seu método cedo na carreira e, fora algumas digressões (O Curioso Caso de Benjamin Button, Mank), explorou dentro desses códigos. Não necessariamente ganhando a carteirinha do clube do Ozu, mas certamente estabelecendo uma fórmula nas quais ele pode mudar a receita, mas mantém sempre os mesmos ingredientes.

Logo, quando Mank (2020) e suas idiossincrasias chegaram a Netflix, o estranhamento foi generalizado. Nenhum assassinato, nenhum mistério, pouco ou nenhum suspense: não exatamente o que se esperaria do sucessor de Garota Exemplar (2014) que levou seis anos para ver a luz do dia. Aliás, por mais que ainda considere Fincher um dos melhores diretores norte-americanos da contemporaneidade (ele já foi meu favorito da vida, mas cresci), é inegável que sofre do mesmo mal que os Nolans e Tarantinos da vida. Cada projeto novo é, também, um atestado de sua megalomania, de que são artistas que não podem apenas pintar, mas tem de mover parte do mundo junto com eles.

Daí, The Killer parece, três anos após Mank e nove (9) após o último filme de David Fincher, um comentário mais fidedigno, portanto mais metódico e obsessivo, a toda essa empreitada que se tornou sua carreira.


metodismo consciente

Como parece estar virando moda, diretores condecorados tem divulgado uma única imagem de seus filmes com o suficiente para que possamos especular o que estes, de fato, são. Aconteceu com Scorsese e o jantar de DiCaprio a mesa em Assassinos da Lua das Flores (2023), e também com Fincher e seu enquadramento Melviniano de Michael Fassbender.

Algo curioso nos dias tiktokzados de hoje, que fotos estáticas criem tanto ou mais hype que um trailer cheio de movimento, mas talvez faça sentido: a imagem como evocação de signos, mas também da ansiedade. E com certeza estou esticando mas, sendo o filme mais auto-consciente de um diretor maliciosamente cético, The Killer é também sobre isso: sobre a chamada pós-modernidade, sobre o esvaziamento das relações e, principalmente, do comportamento humano. Sobre as propriedades da imagem como chamariz, mas também como repouso passageiro.

Nessa lógica, faz completo sentido que seja lançado direto na Netflix, que Fincher faça pouca ou nenhuma questão de tê-lo na tela grande. Inclusive, parece um filme feito com esse propósito, que rejeita as batidas tradicionais do roteiro norte-americano (algo novo pro Fincher, aliás) e opta, como li por aí, em ser um filme de argumento. As coisas que acontecem, o começo meio e fim, mas não necessariamente com qualquer desenvolvimento além dos meros acontecimentos em si. A sensação é quase de uma série de vinhetas, de episódios curtos costurados um no outro que passa sem parar, como se os botões de pular tivessem sido excluídos para nos poupar tempo.

Há pouco ou qualquer investimento emocional, The Killer se move pelo interesse no que vem a seguir, pela ansiedade criada pelas situações e não por qualquer dramatização na encenação. As mortes se repetem e se somam ao passo que a identidade do assassino é cada vez mais fragmentada e espremida (os cartões e os muitos nomes me lembraram a criação das Horcrux em Harry Potter), um filme de modos impessoais e que tem ainda menos pessoalidade diegética. O fato de não ter um detetive atrás do assassino, ou qualquer consequência pra infinidade de provas que ele deixa por aí, praticamente confirma que, no fundo, o filme pouco se importa com nada exceto a forma.

Se quiser esticar ainda mais, é um filme que compreende as tentativas de anti-cinema dos últimos anos, e as aplica no Cinema de um dos poucos diretores mainstream que ainda tenta desafiar suas propriedades. Na verdade, parece ter faltado a todos seus muitos imitadores estudar, além de assistir, os filmes de Fincher, pois embora estes tenham uma abundância de planos esquematizados de maneira frenética e esquizofrênica pela montagem de Kirk Baxter (um de seus parceiros habituais), os dois muito mais experimentam com a possibilidade dessa cena instável do que as usam como mero recurso. Se os movimentos hiper sincronizados de câmera tentam raptar nossos olhos, a alternância de planos funciona, em filmes de Fincher, como uma apropriação mental de como o Cinema é recebido por quem hoje o assiste, algo que ele já fazia décadas antes de se tornar uma tendência (insuportável, diga-se) do contemporâneo.

Diferentemente de Shyamalan (que também começou com filmes de suspense minimalista nos anos 90), Fincher não acredita no poder restaurador da imagem, mas em sua corrupção irreversível que leva o mundo pós-moderno a ruínas inevitáveis.


EM TEMPOS DE ESVAZIAMENTO

Fincher sempre fez comédia (às vezes, romântica) disfarçada de suspense, uma comédia de ironias, gestos e frases presos dentro de seus códigos visuais opressivos e que, ao menos pra mim, sempre vem com o intuito de nunca levar seus filmes a sério demais (algo que ele parece ter previsto como um problema já em Se7en). Talvez a falta de núcleo dramático contribua, mas isso parece ainda mais latente em The Killer, onde não há investimento se não o visual e esse elemento cômico encontra mais facilmente a superfície.

Daí, não me pega a melancolia adjacente ao protagonista e a seu mundo pois acredito que, assim como boa parte do cenário, tudo não passa de aparências, de construções minuciosas de um mundo falso, onde mesmo as emoções que o filme cria fazem parte desse jogo perverso. Algo, de novo, muito caro a seus filmes anteriores, e que aqui parece se tornar o filme em si e não apenas uma separação metafísica. O protagonista de Fincher, e talvez o próprio diretor, não acredita mais no mundo como algo a se relacionar, como uma dimensão acessível, mas como um passatempo digital - gosto como todos que ele espiona do apartamento, inclusive, estão sempre entretidos com algo supérfluo (celular, televisão, uma garota de programa).

Daí, quando o mundo se esgota e sobram apenas estímulos, faz sentido que esse seja também seu primeiro filme onde o voyeur toma forma direta: se Millenium (2011) brincou de Blow Out (1966) e Garota Exemplar de Disque M Para Matar (1954) em como exerciam a visão de seus protagonistas e de seu diretor na mise-en-scène, esse tem momentos claros de Janela Indiscreta (1954). Na verdade, é quase como se fossem dois filmes costurados em um, pois após os primeiros 25 minutos (os melhores) Fincher abdica do olhar em prol de um filme mais direto e físico, agora sim emulando o metodismo obcecado de Le Samourai (1967), onde cada movimento de Fassbender é calculado e repetido a exaustão.

A grande diferença sendo que o clássico de Melville existe em um universo austero, enquanto o de Fincher tende a ironizar a si próprio. O de Melville trazia em seus silêncios e modos um drama potente, havia algo entre e por trás do método, enquanto o de Fincher se assume como experimento.

E um experimento bastante extremo, que recusa quase todos os possíveis picos e clímax: toda a vida do protagonista é secundária (legal ver a Sophie Charlotte nem que seja por uma breve cena), a resolução final com o magnata de pijama é blasé, o jantar com Tilda Swinton um belo nada, e mesmo o apelo gráfico das mortes é evitado quase que por completo. Algo que, quando pensado sobre a lógica de que é um filme para (e sobre) um público mais ansioso, mais frágil e mais sensível (não confundir com sensibilizado), faz completo sentido.

Lembra, dessa forma, mais Quarto do Pânico (2002) que qualquer outro de seus filmes, um experimento esvaziado sobre tempos onde o registro é onipresente e a imagem já está mais do que esvaziada.


homem insônia

Se já se tornou uma espécie de consenso que, por ser seu filme mais metódico e vazio, The Killer se aproxima também da alcunha de ser o seu mais pessoal, é inevitável que o longa converse com toda a carreira de Fincher.

Gosto, portanto, de como o filme praticamente começa se acusando da própria auto-consciência. Fassbender substituindo Edward Norton/Brad Pitt sob a mesma luz gelada, com uma narração deprê enquanto a câmera o centraliza frente a janela, onde enxerga um mundo que julga descartável (se lá ele fala de produtos, nesse o capitalismo venceu e são as pessoas que se tornaram totalmente descartáveis). A primeira frase do filme, inclusive, parece um relato do protagonista de Clube da Luta (1999): “É impressionante como pode ser fisicamente exaustivo não fazer nada”.

Entre suas muitas referências e sua obsessão com o próprio método, The Killer, filme e personagem, me fez pensar sobre os precursores ao Cinema de Fincher, e embora sempre careça estudo, penso que não há um parâmetro adequado. Goste ou não de seus filmes, o homem é talvez o único que consegue emular a ansiedade coletiva do pós-modernismo por meio de sua visão fragmentada. Por isso, pode até parecer que ele é conivente com esse mundo, que opera dentro de suas amarras, mas como bom voyeur, me parece que ele só aceita que não há outra saída.

Em The Killer, ele faz um filme sobre si mesmo: um homem que conhece tanto o que faz (a sincronia da gestualidade de Fassbender com os cortes da câmera devem ter sido uma delícia de filmar), que não há prazer se não deixar o olhar escapar aqui e ali. O que resta, além de seguir o plano, é rir.

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