Crítica | Afire

O espelho de Petzold.

Usando os grandes temas, o diretor se aprofunda na psiquê do artista.

“Eu sou da tribo Asra, que morre quando ama”. Diz o poema de Heine que Nadja, a personagem de Paula Beer, declama duas vezes a mesa do jantar já na parte final de “Afire”. O grupo assiste a cena mágica dirigida por Petzold com reações diferentes. Encantamentos diferentes. O do protagonista Leon (Thomas Schubert) é muito mais deslumbrado com as partes que vê de si mesmo na personagem e ainda sobre as coisas que não são dele, mas do que ele gostaria que fossem.

Novo longa de Petzold é um conto sobre amor, trabalho, amizade e também inveja, insegurança e egoísmo no fim do mundo. E no oceano de emoções ácidas e autocríticas que o autor impõe sobre o egocentrismo fracassado do olhar do seu personagem eu me pego em uma contradição. Eu mesmo entro em “Afire” na perspectiva egocêntrica, a ponto de lá pela metade do filme ponderar que o personagem tinha até o rosto parecido com o meu, coisa que não percebo vendo fotos do Thomas Schubert. A armadilha foi preparada e eu caí.

Quando os dois amigos (Leon e Felix) vão para a casa de praia elaborar seus respectivos projetos artísticos, eles logo demonstram preocupações diferentes. Um escreve o outro tira fotos. Leon enxerga como trabalho o que eles vão fazer lá, Felix diz que trabalho é consertar o telhado, comprar o que precisam para se manter na casa. E a presença surpreendente de Nadja impacta eles de maneiras diferentes, quando pouco a pouco vão descobrindo a mulher cada um do seu jeito. Para Leon, que precisa trabalhar no seu péssimo romance “Club sandwich” mas parece conseguir se concentrar só em coisas fúteis, tudo é um estorvo. A praia, os mosquitos, o vento, o barulho de Nadja fazendo sexo com um companheiro misterioso a noite.

Enquanto ele se preocupa com o próprio livro e seus problemas o mundo na volta dele acontece. Felix e Nadja se conhecem, os incêndios florestais na sua volta se espalham e, apesar disso, seu livro continua muito ruim. A única pessoa que parece incomodada pelo erotismo que toma conta do ambiente com a chegada do salva-vidas Devid é Leon, que vê também como grande incomodo a fluidez com que os companheiros de retiro se relacionam enquanto ele além de trabalhar também precisa se preparar para receber seu editor na cidade.

Petzold constrói em Leon uma sensação universal, de estar fora do ritmo, de olhar as coisas na nossa volta e sentir que só a gente está fora do lugar. Quando todos estão vivendo seus belos corpos na praia, Leon está lendo em um canto afastado do quintal. E vem de Nadja a única mão que tenta trazê-lo para o grupo, o que claro ele interpreta como se fosse sobre ele também. Mas claro que o egocentrismo dele em relação ao grupo é também do grupo em relação ao mundo. Vemos os incêndios avançando e avançando sem que eles façam qualquer menção de saírem do seu paraíso onde admiram a beleza das cinzas caindo no mar.

O final do filme ser o livro que Leon está escrevendo ao invés de “Club Sandwich” é a única conclusão possível para “Afire”, na realidade todo egocentrismo e introspecção do personagem resulta justamente na capacidade dele de contar a história que vemos. O sacrifício dele, do amor que sente por Nadja, que ele admite ser uma musa, a quem ele vai esquecer logo, claro, e das relações reais com as pessoas na volta dele o permite contar a história dos seus amigos. Petzold nos faz sentir egocêntricos vendo Leon experimentar a solidão auto imposta no seu mundo, nos faz mediar tudo que ele mostra pela nossa vontade de nos colocarmos nas suas inseguranças, nos seus entraves pessoais, no seu olhar mal humorado das coisas. Assim, o diretor inverte o olhar, me carregou por dentro de “Afire” e me fez sair do outro lado para assistir a vida depois do fim do mundo não pelo olhar de Leon, mas de Petzold.

9

Anterior
Anterior

Crítica | Napoleão

Próximo
Próximo

CRÍTICA | O Assassino