Crítica | Undine

Entre dimensões

Obra prima de Christian Peztold aproxima o clássico, o moderno, e o contemporâneo


O primeiro plano de Undine já traz uma herança que, a grosso modo, carrega a essência do Cinema de Christian Petzold, o mais notório Hitchcockiano em atividade.

É um plano que pode ser percebido em diferentes camadas, as quais o Alemão comumente deixa visíveis em seus filmes, propondo uma satisfação para aqueles que as percebem separadamente, mas uma realização gratificante para os que as assimilam como partes de um todo.

Em simples leitura de recursos de linguagem, geralmente o segundo passo de alguém que se propõe a debater Cinema (após a corrosiva ideia de que tudo é storytelling), vemos Paula Beer, versão mais jovem e encantada de Nina Hoss (a musa “original” de Petzold), fotografada com cores vibrantes e uma delineação maciça, que confere peso a seu belo rosto cujos cabelos ruivos desgrenhados conferem um ar de beleza clássica e moderna ao mesmo tempo. É, acima e na superfície de tudo, uma bela imagem, um chamariz para olhos semi-atentos.

Mas conforme um se torna sensível a história do Cinema, e expande os olhares para além do eixo Hollywoodiano, logo certos filmes de diferentes fases se conectam em uma espécie de cânone - não apenas referências, mas conexões que ressignificam obras e as fazem conversar entre si. Para mim, o plano me remete ao de outro notório Hitchcockiano, este isolado pelas águas que, mais tarde, inundam a mise-en-scène de Undine: na primeira imagem que vemos de Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa filma uma mulher de costas, olhando para o mar. Lá, as cores vibrantes dão lugar a um cinzento mórbido, e o barulho do vento impede qualquer espécie de paz ou contemplação no admirar: claramente, vemos uma imagem que ainda há de ser explicada, de alguém que tudo indica passou por muita coisa, e agora olha sem rumo para um mundo distante pela água.

E é no olhar que Undine e Pulse se conectam. Enquanto vemos o que um mira, mas seu corpo está fora de campo, o outro sofre uma inflexão que re-estabelece o sentido de seu plano: Beer, alterando sua expressão de maneira sútil, mas avassaladora, desperta um jogo de encenações que nos lembra estarmos assistindo a uma atriz, e logo sua imagem realiza pontes entre distintos filmes, de diferentes épocas e países, que se conectam ali por esta ser, em suma, outra reimaginação de Vertigo (1958), filme o qual Petzold parece não conseguir fugir. Porém, se Nina Hoss em Phoenix (2014) encarna a dualidade de Kim Novak, Beer está mais próxima da beleza, afetada pela vida real, de Madeleine. Começamos, então, não do fim (como iremos aprender), mas de um ponto onde já ali, no universo do filme e naquele onde habita (no caso, o cânone de Vertigo), existe uma herança que ainda descobriremos, mas que joga Undine na direção da vertigem, da cosmologia fantasmagórica do filme de Hitchcock.

Por sinal, Petzold logo responde onde mira o olhar de Undine: em um contraplano, onde vemos um ator com cara de modelo de propaganda de cueca, estabelecendo com o efeito Kuleshov a primeira pista do mistério (em seguida, a troca entre os dois situa a mitologia do filme com uma simples frase que parece jogada) - não que fosse necessário, pois com apenas um plano, apenas uma imagem, Undine já começa com a força de uma tsunami.


FANTASIA EMERGENTE

No português, Ondina é uma criatura atribuída ao alquimista e filósofo Paracelsus, figura central da renascença alemã, que acreditava que cada um dos quatro elementos possuía uma espécie de espírito elemental, criaturas liminares que habitam nosso mundo: gnomos (terra), silfos (ar), salamandras (fogo) e ondinas (água). Mas assim como em outros filmes de Petzold, a mitologia é empregada em um cenário real: Undine, a protagonista, é uma historiadora da arquitetura alemã que pode, ou não, saber de sua origem fantástica.

Petzold parece, de certa maneira, ciente de seus contemporâneos, pois a sensação é de que, a seu modo, ele filma um filme de Hong Sang-soo mas um que acredita tanto na magia do mundano que flerta com o Cinema de fé, mas também do sobrenatural, de M. Night Shyamalan. As conversas, do teor à disposição em cena, lembram muito a fase final dos anos 2010 do sul-coreano, ritmos próprios que acompanhamos por um breve momento mas que não oferecem qualquer limitação naturalista. Pelo contrário, o clássico em Petzold não está no tempo e nas ações das cenas, mas em seus enquadramentos: talvez seu filme mais frontal (mesmo considerando Phoenix), onde vemos com clareza a disposição dos corpos na cena, mas onde os atores não seguem qualquer batida tradicional na encenação, criando uma dissonância entre uma plasticidade clássica e um ritmo moderno.

E embora seja consideravelmente mais sutil, aqui e ali algumas cenas remetem ao fabular que percorre toda a filmografia do Indiano. A cena do aquário (e a abundância de vidros, no geral) talvez sendo a maior aproximação: quando Undine e Christoph caem lado a lado, é quase como se víssemos o início de uma comédia romântica, mas Petzold entende o digital como maneira de se recriar o clássico, e o movimento imperfeito de uma água em CGI realça o aspecto fantástico de seu filme e conversa com diversas obras de Shyamalan (da fraqueza de Dunn em Corpo Fechado e dos Aliens em Sinais, a elementos centrais em A Dama na Água, A Visita e Tempo). Pelos enquadramentos diretos, que reforçam a necessidade da dramaturgia, mas principalmente pelas propriedades da imagem robusta, mas ainda cristalina, ele é capaz de filmar esses momentos “reais” com um ar de maravilhamento: de aquários despedaçados, a abraços calorosos, a idas e vindas de trem.

Mas se estes se somam, nada se compara a sua sensibilidade em captar gestos. Nisso, talvez algo de Jacques Tourneur, e sua capacidade de transformar o mundo do filme com uma simples sugestão. Em mais um jogo de plano-contraplano, talvez o maior da década até agora, dois casais se cruzam, e um olhar escondido, por sob os cabelos ruivos, entrega uma infinidade de sentimentos que tornam o momento um microcosmo que existe além do tempo. Em um filme tão frontal, é quando se olha pelo ombro que mais se revela algo, mesmo que esse algo seja, de novo, a magia escondida no gesto, tudo que ele revela e tudo o que não.

Não existe hoje, no mundo, alguém que melhor filme um plano-contraplano que Petzold, mas é glorioso descobrir que seu uso de zoom não fica muito abaixo dos dois citados acima. Inclusive, é quase como se ele se propusesse a provar isso, em uma montagem que não apenas confere um zoom espacial e metafísico impossível se não pelo Cinema, mas que costura os temas que já se tornaram tão comuns a seu trabalho: enquanto explica para turistas interessados (ele acreditar no poder do conhecimento já me faz gostar ainda mais do cara) a história arquitetônica de Berlim, Undine fixa os olhos na miniatura de um estabelecimento onde, o corte e o zoom revelam, seu amante (o modelo de cueca) está sentado em um café, decidindo se por ela espera ou não.

O passado como espaço fantasmagórico onde agora ocorre o presente, uma assombração que não existe no campo de visão, mas deixa turva a mente daquela assombrada. A união do passado eminente de um país tão central nos desenrolares do século 20, com um relacionamento moderno, líquido.

Se acabasse aqui, com poucos minutos, Undine já seria um dos meus filmes favoritos dos anos 20, mas ainda temos mais.


FANTASMAS E ÍCONES

Já não estivesse implícito, o que todos estes diretores que comentei têm em comum é que todos acabam no mesmo lugar: Hitchcockiano incurável, Petzold segue refilmando Vertigo, sob diferentes lentes, em diferentes cenários, aliado a diferentes fábulas e mitologias, mas sempre em busca da assombração máxima que, seu fabuloso Em Trânsito (2018) propõe, existe para além do espaço-tempo.

Mas pela primeira vez, e talvez por apenas agora estar a isso sensível, vejo nele também o todo, a tridimensionalidade já presente em Murnau e aperfeiçoada pelo meu outro diretor favorito. Em Kenji Mizoguchi, a mise-en-scène é como um mundo tangível, que destaca ao mesmo tempo que aproxima e afasta, que potencializa, portanto, o melodrama, a tragédia, o sacrifício - e por duas vezes Petzold praticamente recria a cena chave de Intendente Sansho (1954), além de utilizar do mesmo canto (musical, não espacial) fantasmagórico (aqui, um telefonema, ressaltando como o anacronismo talvez seja seu traço mais seu) como dispositivo narrativo. Mais do que isso, ao vermos Christoph retornar do lago com o pequeno marinheiro, é como se a herança da obra máxima de Mizoguchi fosse trazida da mesma maneira que os ícones de Hitchcock. Com uma cena simples, Petzold coloca os dois maiores diretores da história para conversar, e seu filme atinge uma proporção inconcebível de tão sublime.

Inclusive, pouco antes da ligação fantasma, Undine ouve Stayin Alive, do Bee Gees, e entrega a principal fala do filme: ouvi todas as versões, mas nenhuma supera a original. O cara faz tudo isso, e ainda sabe que jamais chegará em Vertigo, em Sansho, em Aurora (e, por que não, em A Palavra), assumindo que a assombração do passado é, mais uma vez, inerente à qualquer magia que ainda exista no presente. Ao menos, ao dedicar sua carreira a se aproximar do mundo tangível do ideal inatingível, Christian Petzold oferece viagens extraordinárias entre algumas das dimensões mais imaculadas dessa coisa que chamamos de Cinema.

O resultado, mesmo com um final "feliz", não poderia ser mais devastador. Um filme que mergulha, vê, mas nem mesmo com o auxílio da câmera, é capaz de tocar.

10

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