Crítica | A História Real

JORNADA NAS ESTRELAS

Sem sair do chão, Lynch viaja pelo espaço-tempo


Um dos momentos mais candidatos a clássico do Cinema norte-americano nos últimos anos - se levarmos em conta os grandes portais que decidem isso em tempos de crítica-propaganda - é a cena de Interestelar (2014) onde Matthew McConaughey assiste a vídeos de seus filhos, dias após deixar a Terra partindo em uma missão para salvar a humanidade. Antes uma criança e um adolescente, agora ambos são interpretados por atores adultos, mas de nada o rosto de McConaughey mudou desde o último momento em que se viram. A teoria da relatividade - e o roteiro expositivo de Christopher Nolan - explica: enquanto a viagem durou um tempo X para o astronauta, aqueles que ficaram na Terra viram suas vidas inteiras passarem antes de seu retorno.

Mas o que falta a Nolan, como diretor de modo geral mas principalmente em Interestelar, são as nuances. Se lhe sobra ambição em contar histórias complexas, lhe falta sensibilidade em perceber, ou sequer despertar, a humanidade nos personagens que vivem essas histórias. Apesar de criar uma dinâmica potencialmente dramática, lhe falta o melo para que sua câmera capte mais do que um apanhado de 0s e 1s - e não me refiro aos efeitos visuais, mas ao formalismo calculado que esteriliza seus filmes emocionalmente.

Melodrama, em suas mais distintas e distorcidas formas, que não falta a David Lynch, talvez o único “grande” diretor norte-americano contemporâneo que se apaixona enquanto filma. Que mesmo quando experimenta com a possibilidade de teorizar algo em sua empreitada maneirista e digital não deixa de se ater aos corpos que filma, aos gestos que estes realizam, e a humanidade que deles emana. Sem nunca ir ao encontro do naturalismo que tomou conta de Hollywood, Lynch filma a natureza, seja ela em uma floresta escura ou nas fábricas, ferragens e fazendas de uma cidadezinha esquecida.

E em Uma História Real (1999), talvez seu filme menos falado, ele se permite fazer o que Twin Peaks já havia apontado como uma de suas obsessões na vida. Embora seja reconhecido por seus mistérios surrealistas, talvez a grande qualidade de Lynch como diretor seja revelar a presença destes no mundo normal, este que vemos todos os dias. Como apontado por Bruno Andrade em um rápido comentário no LetterBoxD, seu Cinema constitui uma oposição a Jacques Tourneur: enquanto o Franco-Americano filmava um fantástico de sugestões, mundos que parecem o nosso mas que não são, Lynch extrai uma estranheza escatológica de mundos que parecem surreais, mas que nada mais são que o nosso sob lentes distorcidas - essas lentes podendo ser o digital, a estilização, ou apenas um anamorfismo.

E claro que uma história como essa, de um velho fazendeiro que cruzou estados em um cortador de grama para visitar seu irmão doente com quem não falava a anos, chamaria sua atenção. De cara, apesar da natureza inusitada, não parece haver nada de fantástico exceto o ímpeto do velho Alvin. Se há fantasia, ela está na humanidade de um ato marcado pela relação daquele ser com seu pedaço de mundo, uma teimosia atrelada aos costumes - a rejeição da tecnologia, a falta de dinheiro - que resulta em uma decisão, para muitos, coisa de filme.

E é divertido ver como o cenário aberto, ad infinitum - sem a limitação das cidadezinhas, das casas com segredos obscuros, dos hotéis - permite a Lynch encontrar talvez liberdade total em seu Cinema. Os fades marcam elipses, a trilha de Badalamenti romantiza as paisagens, o olhar carregado de Richard Farnsworth adiciona reflexão, a uma jornada de imagens que se torna espiritual devido a força tradicional de uma unidade que até se aproxima do clássico. De certo modo, como teorizado por Andrade ao se referir a sequência da menina fugindo dos pais, aqui Lynch se reaproxima de Tourneur, principalmente de algo como Stars In My Crown (1950), do milagre presente na vida, da magia do cotidiano, em como duas vidas brevemente se conectam no tempo, mas esse encontro reverbera em distâncias inconcebíveis - algo que encontra eco também no drama da filha, na sequência com o casal acolhedor, na morte do cervo.

De todos os filmes de Lynch, é talvez o mais clássico e naturalista, menos “maneirista” e referencial, o que menos nasce do esgotamento dos meios que o influenciam - em outras palavras, é o único de seus filmes que poderia passar na sessão da tarde, e falo isso como um grande elogio.

Mas comecei este texto falando de Interestelar, e apesar de haver uma semelhança perceptível na jornada de ambos os protagonistas - embora a de Alvin já parta dos efeitos do afastamento, ambas são sobre pessoas que tem de travar distâncias incríveis para se reencontrar -, apenas isso não justificaria a ideia central dessa crítica. Onde o filme de Lynch se encontra é justamente naquilo que falta ao de Nolan: não são precisos cálculos realistas, física quântica ou uma suposta verdade universal para que percebamos o poder do universo na nossa existência como seres humanos. Algumas vezes, basta olhar para o céu estrelado para reviver anos há muito vividos, viajar por todo o tempo que passou, e lamentar todo o tempo que se perdeu.

8.5

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