Crítica | Retratos Fantasmas

Foto montagem de Kleber Mendonça fica no limite entre paixão e insegurança.

Nome de maior destaque do cinema brasileiro nos últimos 10 anos faz retrospectiva de sua vida, carreira e seus atravessamentos.

Não é surpresa que Kleber Mendonça Filho se interesse pelo passado, por Recife e pelo passado de Recife. Esses temas são talvez os mais importantes da sua carreira, os fantasmas que circulam as casas de “ O Som ao Redor” (2013) e “Aquarius” (2016), como filma a cidade no curta “Recife Frio” (2009) ou a cidade e as pessoas dela como forma de resistência em “Bacurau” (2019). Seu quarto longa pretende parecer mais ambicioso que os anteriores. Trabalhando com foto montagem pela primeira vez desde o ótimo “Vinil Verde” (2004), o diretor coloca sua nostalgia e seus pontos de vista sobre o tempo em Recife, contados por ele mesmo enquanto vemos uma amplitude de imagens que em momentos emocionam, mas em outros se tornam redundantes e reacionárias.

“Retratos Fantasmas” é uma experiência intensamente pessoal para o diretor, e para mim também. Ainda que eu não conheça o Recife, me conecto em várias formas de ver e descrever a minha cidade natal, Porto Alegre, com o jeito que Mendonça Filho narra sua casa, sua rua, seu bairro e, mais importante, o centro de sua cidade. Aliás, assim como o diretor, consigo tranquilamente ficar 90 minutos (e muito mais) contando histórias da minha cidade, dosando paixão, nostalgia e crítica explicando as ruas, os prédios e as pessoas que habitam eles.

Esse sentimento que é o seu novo filme ao mesmo tempo me agrada e me causa certo estranhamento. A perspectiva do diretor parece exaltar o passado (o seu, o da cidade) como um lugar mágico onde existiam marquises de cinema que destacaram os filmes que ele ama “Johnny Guitar” (1954), “Dona Flor” (1976) , “Aliens” (1986) e muitos outros. E falando desses cinemas, o diretor exibe as melhores imagens do longa, os enormes cinemas vazios, as cadeiras e as paredes nas mais diversas cores, nenhuma delas de gente.

Há uma vontade também de experimentar a mistura das diferentes tecnologias que passaram pelo cinema nos últimos 100 anos, segundo o diretor. E a eficiência técnica que ele demonstrou ao longo de toda sua carreira, sem dúvidas comprovada pelas cenas dos seus primeiros curtas no novo projeto, é parte fundamental do que vemos. Sua casa, seu centro de Recife e seus cinemas são os espaços que ele descreve como uma igreja apesar de passar mais a sensação de uma sala de aula para sua arte, e ele destaca as técnicas de fotografia, som e edição que aprendeu nesses espaços ao mesmo tempo em que pontua para o público o que está fazendo.

Excessivamente apegado ao passado e as coisas como eram, seu olhar privilegiado para a cidade causa certo incomodo, ele descreve o movimento que fez do seu bairro na zona sul para o centro como o contrário do sentido que o dinheiro fez na cidade. Dentro da estrutura de classe da cidade ele foi de cima para baixo, assim como seu filme. E às vezes parece mais preocupado com a mudança no espaço e com a falta de atenção que recebe, com a disparidade da sua maneira de olhar para seus templos e das pessoas que passam por esses lugares do que com essas pessoas. Interessado talvez por quem esteve ali no passado. Daí o título original, conservado em inglês, “filmes de fantasmas” que parece agradar mais o diretor, ou pelo menos o filme que o diretor fez.

E nessa parte do texto chego em uma contradição invencível: o que gosto e não gosto em “Retratos Fantasmas” são a mesma coisa. O olhar romântico e alienígena que descorporiza as pessoas que pisam no centro de Recife e as transforma em personagens místicos de uma história fantástica sobre um lugar no tempo ao mesmo tempo me seduz por uma identificação pessoal mas me incomoda porque glamouriza o ponto de vista classe média alta que ama o jeito que as coisas eram nos anos 1980. Mesmo que marque as caixinhas falando das relações políticas e sociais que atravessam o centro do Recife nos últimos 100 anos parece fazer isso para marcar caixinhas, o interesse real é na relação espiritual entre diretor e dirigido.

Por fim, a gritante influência de Agnes Varda na forma e no conteúdo de “Retratos Fantasmas” parece adiantar o olhar de Kleber para sua carreira de pouco mais de 30 anos. Mendonça Filho parece estar querendo fazer seu “Varda por Agnes” (2019) em que a diretora revisitou e explicou as motivações para seus trabalhos. A diferença entre os dois trabalhos é mais aritmética que artística, porque a diretora da nouvelle vague fez exercício aos 90 anos de vida e 60 e poucos de carreira, ponto em que os ecos das suas reflexões encontravam filmografia mais robusta para rebater. Às vezes, quando o diretor aponta a influência da sua casa de infância e da sua cidade no seu trabalho fiquei com a sensação que está muito cedo para descobrirmos isso.

Por isso entendo que ele pretende parecer mais ambicioso, mas não é. Sendo tão pessoal e literalmente abrindo a porta da sua casa, mostrando sua mãe, seus filhos e muito de si mesmo. Se expondo como artista para sua audiência, que é grande, e utilizando uma forma menos acessível de cinema que em seus trabalhos mais recentes, Kleber Mendonça Filho faz um filme extremamente seguro. Que fala as coisas que as pessoas querem ouvir sobre cinema, arte, política, mundo, recontando histórias dos seus aclamados filmes, exaltando espaços que seu público ama como carnaval e cinemas de rua, logo correndo nenhum risco de má recepção e nem de aumentar sua audiência.

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