Crítica | Companheiros: Quase Uma História de Amor

A MAGIA DO ACASO

Entre encontros e desencontros, Peter Chan filma as possibilidades do impossível


Aprender Cinema é algo paradoxalmente complicado.

Quanto mais estudo e julgo aprender, mais as possibilidades se abrem diante de qualquer filme. Ainda mais quando frente a um filme como este de Peter Chan que, se sobre algo em específico, é justamente sobre as possibilidades de se ligar uma câmera e deixar esta capturar um pedaço de mundo.

Mas conforme o conhecimento se acumula, conforme mais sabemos (ou julgamos saber), percebemos que de nada sabemos, e a tarefa de escrever sobre determinado filme se atrela a inseguranças que uma vez foram protegidas pela ignorância. O não saber te dá uma propriedade que o saber raramente conhece, de falar sem a preocupação de estar deixando algo essencial de lado.

Ao refletir sobre minha experiência com Companheiros: Quase uma História de Amor, filme que veio ao mundo no mesmo ano que eu, esbarrei por diversas vezes no interminável espaço entre o escritor e o texto, na incerteza se tinha qualquer algo de valor a dizer sobre um filme que começa a atingir certa maturidade apenas agora - o mesmo não ouso dizer sobre mim. Mas nessa jornada de descoberta pelo mundo do Cinema, e da arte como um todo, como forma de expressão humana direta (de quem faz) e indireta (de quem recebe), às vezes precisamos ignorar o mundo à nossa volta e falar justamente sobre esse diálogo único.

Por isso, não existe frase mais falsa (e preguiçosa) que “tudo que precisava ser dito sobre tal obra já foi”. Em suas tangentes e cotangentes, em sua inconcebível bibliografia virtual, ou em seu ainda incompreendido consciente coletivo, o mundo inteiro em todas as suas épocas jamais será capaz de dizer pelo indivíduo do aqui e agora... mesmo que estes, também, não mais existam.


Com a infinidade de possibilidades como cenário, Companheiros é um filme que tem na especificidade do acaso o centro de sua ideia cinematográfica. Enquanto a mise-en-scène contínua, a edição fluxa e a câmera na mão remetem ao ato de carregar uma câmera por aí e ver no que vai dar, a ação de suas cenas é envolta nesses momentos singulares que, ao se somarem, se aproximam de um verdadeiro acontecimento sobrenatural. Afinal, quantas vezes duas pessoas podem esbarrar uma na outra aleatoriamente?

Assistindo ao filme com minha namorada (que prestava meia atenção), ela comentou como em uma cena a música a lembrava de uma cerimônia espirita da qual participou algumas vezes - no plano, os amantes se beijavam mais uma vez enquanto a câmera se distanciava do carro para cima, como um anjo que havia realizado mais uma vez o seu trabalho de cupido e agora voltava aos céus. Uma adição que eu não poderia fazer, mas que influenciou diretamente minha própria experiência. Pois acredito haver, neste filme, algo do divino (ou sobre ele) - para mim, que travo um combate interno quanto a minha relação com a fé nos últimos anos, este divino se caracteriza justamente pela infinidade do mundano, pela soma de possibilidades que resultam em momentos possíveis apenas, bem, em filmes. Como espectador e como ser humano, me interesso menos em dogmas e crenças, e mais na magia presente no dia a dia, e em como essa magia, seja ela manchada ou não, se manifesta.

Se construindo (e não construído) em torno de elipses demarcadas, Companheiros me parece incorporar a modernidade líquida ao passo que prevê, sente e comenta seus efeitos no Cinema da virada do milênio. Certamente conversa com Wong Kar-Wai e seu Amores Expressos (1994), mas o faz sem precisar das quebras narrativas, e sim como um filme que, se tentado, pode ser explicado como uma comédia romântica clássica. Mas o que importa não é esse segmento, e sim o que ele esconde nessas elipses, a sucessão das possibilidades de um mundo líquido, fluido e que, aqui e ali, culmina em cenas onde a câmera parece perceber o peso da gravidade, nos puxando junto no processo.

Pontos específicos ao longo de uma jornada elusiva, momentos de sensações concretas mediante uma convergência amórfica de estímulos. De beijos inevitáveis à partidas em barcos, convenções que parecem pertencer a um outro filme dentro deste mesmo, a um filme mais fixo no potencial pictórico e físico da imagem, mas que dão a incerteza de algo que parece prever também o digital e suas possibilidades infinitas. A exposição elevada e a iluminação ofuscante deixam tudo mais suave, difuso, incerto e livre, até que o único enquadramento possível se torne as cores duras de um mundo que, passem os anos, continua com seus mesmos cantos que nunca mudam - em uma sequência, vemos literalmente isso, enquanto o protagonista escreve pra namorada e vemos imagens do beco perto de onde mora.

E pessoas vem e vão, se adicionando a pontos marcados nessa linha finita que configura a experiência humana. Justamente em uma dessas idas, é que a magia da vida - seja ela, a morte - resulta na magia do mundo - o acaso. Este, o acaso definitivo, em um filme que com ele começa. Na chegada do trem à estação, duas pessoas destinadas a se encontrarem se desencontram em um país estrangeiro - basicamente, Desencanto (1945), Amor À Flor Da Pele (2001), Encontros e Desencontros (2004), e tantos outros filmes em um único plano.

Mas cá estamos no final dessa trajetória que circula a linearidade. Um plano que, vejam só, é também a capa do filme. Ele e ela a três passos físicos um do outro, e a três passos simbólicos (a janela, a televisão, a distância) de sua terra natal: a Hong Kong que os fez nascer, e a qual os fez se re-encontrar em uma Nova York que, quanto mais conhecem, mais estrangeira se torna. É quase uma história de amor porque este só vem quando toda a idealização do Empire State Building, da Estátua da Liberdade e do Mickey se esgotam.

O que resta é esperar pelo acaso.

10

Anterior
Anterior

Crítica | Retratos Fantasmas

Próximo
Próximo

Crítica | Os 13 Guardiões