Homem-Aranha 2 | O Auge de um gênero
entre o herói e o humano
Filme de Sam Raimi representa o ápice e a essência de um gênero corrompido
Acho que, em 2021, as pessoas já começam a perceber o erro que cometeram uns anos atrás quando, mergulhadas no fetiche do realismo causado pela trilogia do Batman de Nolan, passaram a rejeitar a de Sam Raimi.
E aqui não tenho nenhuma intenção de colocar uma contra a outra (apesar de que seria uma leitura interessante), muito menos tomar lados na guerra de facções que rege a cinefilia brasileira, ainda mais porque gosto de todos os seis filmes relacionados. Meu objetivo com esse texto é simplesmente racionalizar meus sentimentos, manifestar com minha cabeça o que meu coração sempre soube:
Homem-Aranha 2 é meu filme favorito de todos os tempos (de super herói). e também o melhor.
Honestamente, nem lembro quando assisti esse filme pela primeira vez. Tenho forte em minha memória chorar e me assustar com o primeiro, que assisti no cinema com a creche aos seis anos de idade, mas não tenho qualquer fragmento de quando a continuação entrou na minha vida. Inclusive, por um bom tempo acho que esnobei esse, até que, uns seis ou sete anos atrás, um movimento na internet brasileira (e mundial) começou a tornar meme tudo envolvendo essa trilogia e, logo ali, quando revi os filmes, re-descobri a mágica. Hoje, acho que posso tentar explicar o porquê.
As críticas mais comuns são as mesmas de sempre: é tudo cringe demais, como se isso fosse métrica pra dizer se um filme é bom ou não. “Ah, mas ele nem parece com o Homem-Aranha dos quadrinhos”, como se isso também importasse. Cinema é uma arte visual, independente, e não há cartilha que dite o jeito certo de se fazer um filme, apesar de a internet (e vários canais e críticos principalmente no YouTube) hoje acreditar que sim e tentar convencer a todos que algo fantasioso é naturalmente inferior a algo realista.
Então é claro que a trilogia de Raimi sofreria, porque nunca foi sua intenção trabalhar com a lógica em primeiro lugar, algo que contradiria a própria natureza do Homem-Aranha, um cara que anda balançando pelos prédios de Nova York com um macacão colorido.
Já no primeiro filme temos um tom bem esquisito, as vezes até sugestivo demais para algo, em tese, infantil. A luta clandestina, o beijo na chuva com a blusa molhada da Mary Jane (e um plano subjetivo dele subindo e vendo o decote de cima), a surra que Peter leva do Duende no final, nada disso seria mostrado do jeito que foi em um dos filmes estrelados por Tom Holland, por exemplo. É como se a paleta colorida, os diálogos mais “caricatos”, entoados de maneira dramática (aliás, é por isso que até hoje todos lembram daquele tio Ben), e a estupidez de uma cena onde dois caras fantasiados (sem efeitos) conversam chapados em um telhado, fosse contrastada com uma intensidade emocional até exagerada, com um senso de perigo mais real do que qualquer coisa que a Marvel faria (com a possível exceção dos dois últimos Vingadores).
Mas se o primeiro tem uma certa influência da estranheza de alguns filmes de terror dos anos 80 (de Carpenter à Depois de Horas), o segundo parece baixar o tom e abraçar de vez um melodrama brega, até deixando a ação um pouco de lado - enquanto o terceiro, por sua vez, seria o melhor exemplo possível de camp no gênero. Não há mais essa intenção de estranhamento, e sim de comunicar o que sentem aqueles personagens da maneira mais sincera e pura possível, e o que era teatralidade espacial (todos os cenários pareciam montados, muitos efeitos eram práticos e pouco sofisticados) se torna interpretativa.
Se no primeiro filme um plano contra-plano entre Peter e Mary Jane é cortado para a entrada de Harry, gerando um efeito típico de novela, nesse é tudo ainda mais aparente, desde esses diálogos dramatizados, à cenas mais cômicas (como a do elevador), ou emocionalmente carregadas como no café, onde um plano subjetivo mostra MJ se aproximando pra um beijo e, depois, os dois olhando para o Octopus como se estivessem em uma peça da escola. O olhar toma uma força muito grande, olhares que revelam e procuram, a câmera evidencia essas expressões buscando não a veracidade delas, mas as emoções que representam.
Seguindo uma linha narrativa que permite explorar todas essas emoções, o arco que não só Peter, mas todos os personagens percorrem ao longo do filme reforça essa abordagem quase novelesca.
Nos primeiros 20 minutos parece que tudo é um soco, como se fosse humanamente impossível conciliar as duas vidas, algo que vai muito além de “quero sair com minha namorada, mas tenho que salvar o mundo”, assumindo na figura fantástica do Homem-Aranha um problema que todos nós enfrentamos em algum momento. Aí, algo tão simples como uma atriz, em meio à sua peça de teatro, procurando alguém com o olhar e encontrando um assento vazio tem um peso estarrecedor tanto em quem olha como em quem observa de fora. E vejam que mesmo nesses planos subjetivos a câmera segue estável, de novo, procurando registrar as representações das emoções, compondo um olhar apaixonado, romântico e clássico, completamente diferente do que a Marvel ou Nolan fizeram - o que gerou o estranhamento do público ao revisitar esses filmes.
A performance de bobão de Tobey Maguire não apenas serve a essa abordagem, mas sua panaquice nos convida a sentir uma pena caridosa dele (pelo menos eu sinto, baita panaca), elevando tudo o que sofre à potencias que seriam inatingíveis com o aborrescente bêbado interpretado por Andrew Garfield ou o impressionado inocente de Tom Holland. A química dele com Kirsten Dunst funciona justamente por isso, ela é muito na cara com sua paixão por ele, mas ele não reage, o que torna tudo ainda mais cringe, de um jeito bonitinho, de um jeito que lembra aquele(a) primeiro crush da escola. Talvez você sinta uma vergonha alheia porque, de certo modo, se lembre de situações similares que viveu (eu vivi!).
Mas além da panaquice inerente, há também a frustração de não poder viver uma vida normal que, junto a culpa de carregar consigo o assassinato do pai de Harry (ao menos na cabeça do amigo), o assassinato do tio e a dificuldade em ajudar a tia, o faz abandonar o alter ego de Aranha. Se os poderes sempre vieram não apenas como responsabilidade, mas como representações figurativas do simples ato de envelhecer (afinal, eles começam a falhar como todos os nossos corpos em algum momento), é apenas justo que eles vão de uma descoberta da puberdade à questionamentos quanto a própria identidade.
O que antes fazia o olho do adolescente brilhar, agora deixa o adulto cansado. De novo, a maneira como isso é mostrado não podia ser mais aparente: um plano médio de Maguire, com as mãos abertas, tentando entender o que acontece, falhando em subir na parede (uma das cenas mais icônicas do primeiro filme) e, finalmente, jogando a roupa no lixo dos becos onde, antes, salvava pessoas.
Inclusive há vários momentos nessa sequência que conversam com outros semelhantes do antecessor. Um ótimo exemplo sendo a cena do prédio em chamas, onde antes Peter encontrava seu rival no Duende Verde e agora encontra seu maior inimigo neste filme: a culpa que carrega por conta das decisões que tomou. Ele salva uma criança (a cena com os pais é bem escancarada, com direito a um “mamãe” dublado mesmo na versão original), mas logo descobre que uma vida foi perdida. O peso desse momento anula quase por completo a sequencia de comédia romântica onde ele começa a aproveitar a vida de Peter Parker, e o faz enxergar o que todos nós, alguma hora, também aprendemos: a vida não foi feita pra ser fácil, e ignorar nossas responsabilidades pode nos iludir com alívio, mas é uma decisão que no fim só gera culpa e dor.
E embora seja razoavelmente prazeroso ver alguém que apanhou tanto se dar bem por um breve momento, não é esse o filme que queremos ver e muito menos o que somos convidados a acreditar assistindo a esses filmes. Homem-Aranha 2 é sobre altruísmo, sobre sacrifícios, e isso não podia ser melhor evidenciado do que no monólogo da tia May, tirado de livro, melodramático e até moralista de certo modo. Quando Peter pergunta onde estão seus quadrinhos ela diz que os jogou fora, em mais uma clara passagem da adolescência para fase adulta, e então continua a falar do menino que quer ser como o Homem-Aranha:
Ele conhece um herói quando vê um. Existem poucas pessoas por aí, voando e salvando velhinhas como eu. E o Senhor sabe, crianças como Henry precisam de um herói - pessoas corajosas, que. se sacrificam e servem de exemplo para todos nós. Todos amam um herói. As pessoas fazem fila por eles… torcem por eles… gritam seus nomes. E anos depois, vão te dizer como esperaram na chuva por horas só para ver rapidamente aqueles que os ensinaram a segurar por um segundo extra. Eu acredito que exista um herói em todos nós… que nos mantém honestos… nos dá força… nos torna nobres… e finalmente nos deixa morrer com orgulho, mesmo que algumas vezes tenhamos de ser firmes e desistir daquilo que mais queremos - mesmo nossos sonhos. O Homem-Aranha fez isso por Henry e ele se pergunta aonde ele foi. Ele precisa dele.
São momentos assim que movem a narrativa, que tornam literais as emoções e que regem a bússola moral desses personagens. O que torna esse filme o melhor do gênero é porque entende, melhor que qualquer outro, que o heroísmo vem da humanidade de seu personagem, dos questionamentos que Peter Parker tem quanto à sua vida, e de aceitar que precisa fazer o possível para não exatamente superá-los, mas conviver com eles. Isso é o que o torna um personagem tão amável, não se ele lembra o personagem de um dos inúmeros quadrinhos diferentes lançados ao longo da últimas sei lá quantas décadas.
Esses aprendizados, didáticos mesmo, são acompanhados por cenas de ação que os colocam a prova. O da tia May, em especial, precede a famosa cena do trem, onde outro fator que considero brilhante nessa trilogia é endereçado: apesar de ter boa parte gravada em Chicago, esses filmes cheiram à Nova York, e aqui é como se a relação do Aranha com a cidade se estreitasse ainda mais. Sem a máscara (também para podermos ver seu esforço hercúleo), Peter cai exausto, e Raimi é capaz de captar a sutileza do ato daquelas pessoas, de o segurarem e levarem ao centro do vagão.
A expressão de todos, inclusive, mostra o controle absoluto do cineasta sobre a mise-en-scène, tanto quanto a significantes como significados. Aqueles estranhos olham pra ele surpresos e atônitos, como que o fato de ser um menino comum beirasse o inacreditável. Mas mais que isso, são olhares agradecidos e orgulhosos por ele ter voltado.
E eles não hesitam em arriscar as vidas para protegê-lo, e vejam como Raimi os filma de maneira até desengonçada, humana, com um leve plongé cima/baixo que não serve só para mostrar como são pequenos perto da ameaça de Octopus, mas para destacar o heroísmo que aquele ato do Aranha despertou em cada um.
Chega a ser curioso que essa cena, que é uma das grandes do gênero, atinja o ápice da fantasia e do heroísmo em um ato tão “simples” como parar um trem (a majestosa trilha de Danny Elfman é impecável para esse efeito), algo que a maioria dos Vingadores consideraria digno de, no máximo, uma sequência inicial. E com ela Raimi praticamente conclui o principal arco desse e do primeiro filme, pois quem devolve a máscara para Peter são justamente duas crianças, ou seja, a cidade devolvendo para seu herói o poder que ele havia perdido. Ao fazer isso no final do segundo ato, Raimi ainda guarda o final para tratar das relações de Peter com Harry, Mary Jane e, é claro, o confronto final com Dr. Octopus.
Essa relações sendo outro ponto muito criticado pelos detratores do filme, mas mesmo sendo sempre mais do que coincidentes (todo mundo é separado por, no máximo, dois graus) há uma riqueza em como os arcos dos personagens se cruzam: se Peter desiste de seus poderes, Octavius se torna obcecado com eles, contrariando a maneira paralela com que herói e vilão foram apresentados no primeiro filme. O personagem de Alfred Molina (que está brilhante) ainda apresenta motivações plausíveis, sendo que seu objetivo, no fim, é completar o experimento que iria melhorar a vida de tantas pessoas, e sua redenção no final chega a lembrar tanto a história de antigos filmes de terror envolvendo cientistas loucos, como a de Darth Vader (“não vou morrer como um monstro”).
Abrindo caminho para a vilania de Harry por meio da dor de ter em seu melhor amigo o homem que matou seu pai (de novo, na cabeça dele), e finalmente revelando à Mary Jane que ela sempre amou o mesmo homem (em uma cena breguíssima, e linda justamente por isso), Raimi mostra que jamais haverá qualquer conclusão na vida de Peter Parker. O plano em câmera lenta, que mostra uma noiva correndo pela cidade, é contrastado pela imagem que termina o filme: Mary Jane, olhando pela janela, se questionando. A dádiva e a maldição.
De certa maneira, “Homem-Aranha 2” é tanto sobre o heroísmo, como sobre as relações que nos fazem humanos. Sobre como nada é definitivo, sobre como sempre haverão dúvidas, anseios e arrependimentos. Eles nos fazem quem somos, e embora nos questionemos a todo o momento, temos que acreditar que existe um herói dentro de nós, que nos mantém honestos, nos dá força, nos faz nobres e nos permite morrer com orgulho. Mesmo que, às vezes, precisemos desistir do que mais queremos.
O Homem-Aranha, de Sam Raimi e Tobey Maguire, fez isso.