Beyond | Vingadores e a (re)Construção do Herói
Recentemente fiz uma rápida revisita ao Universo Cinematográfico da Marvel (por motivos externos, diga-se), assistindo filmes que tinha deixado passar (ao menos os que me interessavam ao mínimo, foi mal “Hulk”, “Thor 2” e “Homem de Ferro 3”) e embora a sensação final seja de frustração por ver tanto potencial desperdiçado em projetos que não se arriscam em nada, eventualmente retornei para aqueles que considero os melhores indiscutíveis dos estúdios, os quais não assistia desde seus respectivos lançamentos.
E digo, sem culpa nenhuma, que ambos figuram como duas das minhas melhores experiências em uma sala de cinema: apesar de não poder ligar menos para a maioria daqueles heróis (sempre preferi os mangás) e, agora, para seus filmes solo, há algo de simplesmente mágico em meu eu adulto assistir algo que faria meu eu criança pirar a cabeça. Vibrar junto com toda aquela sessão e sentir que várias pessoas passaram pelo mesmo, então, bate ainda mais forte depois de dois anos de pandemia.
Falo, é claro, de “Guerra Infinita” e “Ultimato”, dois filmes que quase fazem valer a cansada fórmula da Marvel. Porém, se pensar isso é tentador, apenas o fazem porque desafiam o que os sub-capítulos pregam: enquanto a maioria surge com o claro objetivo de preparar o terreno para o que está por vir, e seguem a mesma abordagem estética idealizada por Kevin Feige, estes dois possuem personalidade e força própria. Tanto, que considero até dispensável ter de assistir aos outros 20 filmes para aproveitar estes dois.
Nesse Beyond, falo sobre como um filme complementa o outro e porque considero ambos não só os melhores da Marvel, mas entre os melhores filmes da década como um todo.
Simples em sua abordagem, “Guerra Infinita” é sobre urgência e efemeridade, sobre a objetividade de ter de destruir um vilão que quer destruir tudo que foi construído até então, uma ameaça simples, mas que joga com a ideia de que o público participou dessa construção. Econômico em sua trama, a dramatização e o investimento emocional fica por conta dos próprios personagens, estes mais resumidos à ações do que a emoções. Não há tempo de pensar no que pode ser, precisa-se agir. Nesse sentido, a encenação dos irmãos Russo não poderia ser mais clara: a câmera na mão que incomoda em tantos outros filmes aqui surge apropriada, Stark dobra em uma esquina onde o pandemônio parece estar acontecendo e casualmente uma nave gigantesca paira sobre Nova York, em uma cena quase documental e que usa do realismo para nos fazer abandonar a descrença. O modo como são pegos de surpresa em meio à atividades cotidianas, ele e os Magos, alude à isso: não há preparação, há apenas ação e reação.
E é incrível como esses problemas antigos acabam se tornando soluções possíveis aqui. Se filmes como “Thor: Ragnarok”, “De Volta Pra Casa” e “Doutor Estranho” parecem estar com medo de ser cringe ao abraçar as naturezas bregas de seus personagens, aqui essa des-glorificação encaixa como uma luva, sendo que todos soam minúsculos perto da ameaça que é o gigante roxo. Afinal, os dois vingadores mais fortes tomaram uma surra para sua versão base, um ser tão intransigente que nem Loki e suas espertezas (que, pra mim, já soam cansadas) são capazes de dobrar. É como se as piadinhas não fizessem efeito em Thanos, e é justamente ao usá-lo de maneira conflitante na abordagem corriqueira da Marvel, e não apenas como desculpa para ação, que o filme consegue abordar os temas complexos que o vilão traz: o quão insignificantes, ignorantes e egoístas somos perante o universo, e o mundo, à nossa volta? Selecionamos com o que nos preocupamos, e é difícil ser altruísta quanto aos trilhões que vão morrer quando estamos primeiro preocupados com a nossa chance de 50%.
Até por isso, algumas tentativas de humor soam ainda mais deslocadas que o de costume, com destaque para a crise de identidade do Hulk, que não deixa de ser interessante justamente por representar esse processo de perda do heroísmo, mas que surge em momentos inoportunos (“vocês estão ferrados agora”). Já outros momentos funcionam melhor, como as interações dos Guardiões com Thor (o Drax lá é genial), ou alguns momentos de camaradagem durante os combates (“I am Groot”, “I am Steve Rogers).
Quando funcionam, as piadas servem esse conflito de abordagens, pois é quase como se enfrentassem algo que jamais foram preparados para. Assim, os Vingadores assumem um papel quase simplório, de meros sobreviventes, agindo por um impulso tão efêmero quanto a vida contra um ser mais sofisticado, preparado e idealizado. Thanos sabe o que quer, e fica claro que jamais o faz por vaidade, tanto que ao realizar seu plano não há nele a vontade de tripudiar ou governar os derrotados, porque afinal, ele os considera abençoados. Apesar do caos que cria, o que lhe resta é paz, como a já icônica cena dele sentado olhando o pôr do sol.
Essa objetividade narrativa permite também que a ação seja elevada a enésima potência, como se todas as melhores ideias tivessem sido guardadas para agora. A influência dos animes é totalmente exposta, com direito a um clones das sombras e um kame-hame-ha, mas atingindo o ápice na transformação em Super Sayajin de Thor, parte crucial de toda essa des-glorificação: sendo o único Vingador que é pintado como um herói no sentido Grego da palavra (o cara abre uma estrela…), ele surge como o último raio de esperança, mas mesmo essa sua forma super-poderosa é em vão, quando o estalar de dedos, antes uma figura de linguagem, apaga tudo. Pela primeira vez em 10 anos, a Marvel pode dizer que fez jus à seu pseudo-realismo: a câmera na mão acusa a simplicidade daquele momento. Todos aqueles heróis, antes imbatíveis e inabaláveis, com muito menos percalços do que se imaginaria para um universo recheado deles (há perigos mais reais para Tobey Maguire em “Homem-Aranha 3” que em todos os outros 20 filmes juntos), viram poeira. E os que ficam, nada podem fazer. Ali não há mais magia, mais poder, mais piadas, mais glória. Enfim, humanos.
“Ah mas eles vão voltar no próximo filme”, todos teorizavam, entre outras opções que tentavam usar da lógica para explicar a sensação de sair do Cinema derrotados. Ou melhor, explicar a sensação de inevitabilidade, de perda, de desespero, que os outro 20 filmes raramente chegaram perto de alcançar. É quase como se tudo que aquelas pessoas foram acostumadas a entender como Cinema (uma lástima, inclusive) tivesse desaparecido junto (por isso até considero a cena pós-créditos um movimento quase covarde). E foi um ano longo, difícil, polarizador - especialmente no Brasil - até o lançamento de “Ultimato”, e minha maior preocupação rezava justamente em como iriam abordar essa volta, aparentemente, inevitável de todos os desaparecidos.
Felizmente, a sequência não apenas começa de onde “Guerra Infinita” parou em questão de trama, mas na própria abordagem. Há uma certa dicotomia no prelúdio envolvendo o Gavião, em casa com a família, e Stark, no espaço com Nébula, mas ela acaba tendo suas linhas borradas quando o sentimento que envolve os dois se tornará, eventualmente, o mesmo. Quando vemos Stark em seu último ato, ele contempla o vazio que o cerca e reconhece, talvez pela primeira vez, a própria insignificância. Não resta mais heroísmo, apenas humanidade, e um dos planos mais bonitos de todo o MCU onde ele segura o capacete em uma espécie de “ser ou não ser”, reconhecendo que mesmo a tecnologia encontra uma barreira inalcançável da qual nós, como espécie, não conseguiremos ultrapassar. Uma vez o universo vai engolir tudo, e acabar (boa noite e bons sonhos inclusive).
Em mais uma espécie de desconstrução não comum à Marvel, a Capitã que leva o nome da franquia chega como uma esperança quase fantástica, e o grupo logo viaja junto a um planeta ensolarado e cheio de flores, quase uma ilusão baseada no conhecimento prévio daquele universo e que sugere que as coisas poderiam ficar bem. Mas logo o arco de Thanos é encerrado, com ele provando que por trás de toda a arrogância e soberba, sempre houve o ideal, e a forma com que morre é quase tão simples e desconstrutora como as poeiras do Voldemort. Nas mãos do machado de Thor, os Vingadores cumprem o nome que batiza o grupo, e o que resta é a desolação que o próximo plano já acusa de maneira tão objetiva: uma Nova York afundada em nuvens escuras introduz uma reunião puramente tecnológica e procedimental, enquanto uma distância maior que a do universo separa os que ficaram. Ao estender o período para cinco anos há um peso inerente que é feito visível pelos diretores: construído em cima dessa melancolia, que mais do que flerta com o melodrama, é possível dizer que o melhor momento do segundo filme é justamente esse começo, onde os efeitos do primeiro são sentidos.
*Um parênteses para uma teoria que deve estar em algum canto do YouTube: os Vingadores originais podem muito bem representar os estágios do luto: Negação (Viúva), Raiva (Gavião), Depressão (Thor), Barganha (Hulk), Aceitação (Stark), e na mais clichê das tropes narrativas, quando se unem são capazes de não apenas superar suas dores, mas reverter o que as causou.
“Ultimato”, então, tem um arco quase oposto ao de “Guerra Infinita”, mas que no fim constitui uma mensagem unificadora. É um filme que evidencia o processo de tornar herói o que deixou de ser, de retornar capaz o que não foi, mas sem nunca abandonar a humanidade criada ao longo desses dois filmes. Faz isso com uma relação mais pura com os gêneros que adota, da maneira direta como discute outros filmes de viagem no tempo (quase abandonando a tão amada lógica), ao melodrama retrô, meio de televisão no momento de Stark com o pai, à momentos mais fantásticos como aquele envolvendo a Viúva e o Gavião - “xingam” de brega essa cena as mesmas pessoas que julgam a trilogia de Raimi, é uma cena linda justamente por ser sincera e direta nas emoções que mostra em tela. Até mesmo a interação mais bobona, novelesca, do Thor com a mãe se torna algo bonito, e vejam como ali a morte é tratada não com uma inevitabilidade assustadora, mas como algo normal, como deve ser.
Críticas mais convencionais falariam em amarrar as pontas soltas, mas nem acho que seja isso. Há sempre uma sugestão no meio de tudo (Loki, o passado de Steve Rogers, o multiverso), o que acontece mesmo é um amadurecimento narrativo dos personagens, que definitivamente demorou filmes de mais pra rolar, mas que soa orgânico com tudo. Com toda sua pose dramática, “Ultimato” é um filme até bem infantil nesse sentido, é tudo muito didático, quase lúdico, os cortes não procuram ter qualquer lógica interna se não mover a narrativa pra frente, a câmera mostra a ação de maneira de maneira direta e se permite apreciar planos visualmente carregados, a trilha sobe quando tem que subir, eles vão de seres encolhidos em suas cadeiras, à figuras que se agigantam ao estufar o peito para fazer o que tem que ser feito. É literalmente a glorificação que é desconstruída em “Guerra Infinita” retornando. Enfim, heróis.
Por fazer isso, o filme faz algo similar aos últimos dois “Harry Potter”, mas em um filme só: se as primeiras duas horas trazem esse desenvolvimento dramático, a última se permite ser todo o fan service possível, construindo uma relação tão pura com a ação que quase entra no vulgar, afinal, o que de mais simples existe do que um grupo de pessoas tentando levar um objeto a um gol?
E vamos lá, se você não se arrepia com o Capitão América (um personagem que eu não podia ligar menos) se mostrando digno do martelo do Thor, ou com o retorno e união de todos os personagens com a característica música tema subindo, sinto muito, mas tentar diminuir o sentimento das pessoas com “é filme de boneco” te faz parecer o estereótipo do cinéfilo celibatário. Desde o plano fechado no Cap à todo o campo de batalha que parece quase um “Onde Está Wally” (e que se concretiza quando eles vão atrás da van), arrisco dizer que se o filme terminasse no momento em que as tropas se chocam o efeito ainda funcionaria. Ainda teve gente discutindo a plausibilidade de todas as heroínas se juntarem no campo de batalha, mas e daí? O que o filme faz, e conscientemente, é entregar pro público o que ele queria ver depois da montanha russa de emoções que passaram ao longo das últimas quatro horas e meia. Criticar isso é algo muito supérfluo.
Ainda mesmo após todo o festim, há uma última resolução que, assim como esse par de filmes, inverte duas jornadas para encontrar a mesma resposta de, quem diria, balanço. Enquanto Stark percebe que seu papel como Homem de Ferro é se sacrificar por todos, Rogers se permite abandonar o Capitão América para viver a própria vida. E assim, um filme que começa com um gigante roxo e outro verde se enfrentando no espaço, termina com um momento tão íntimo como uma dança entre duas pessoas que se amam.
Com quase seis horas de duração, uma narrativa construída ao longo de 22 filmes e uma gama de personagens e tramas entrelaçadas, o ato final dos Vingadores é assumidamente simples, assim como os heróis em roupas coloridas que voam por aí e inspiram milhões. Enfim… chorei, vibrei, ri, senti. Tudo que o Cinema pode fazer, acho que é feito aqui.