Crítica | Donda - Kanye West

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“Eu costumava amar Kanye”.

Engraçado pensar que lá em 2016, quando o mundo começava a se mostrar cada vez mais maniqueísta, Kanye West fez uma música sobre as pessoas sentirem saudades do velho Kanye e odiar o novo Kanye. Em “I Love Kanye” ele diz que, naquela época (2016), olhava em volta e via muitos Kanyes. Ainda caminhava de mãos dadas com aquela prepotência magnética que atraía todos olhares do mundo, se questionando como ele poderia elevar mais o nível, pois, em The Life of Pablo, ainda demonstrava ser a síntese de quem um dia havia mudado o jogo e a cultura.

Hoje, em 2021, gradativamente vemos menos pessoas inspiradas em Kanye West, e não há nada de anormal nisso. Declarações polêmicas somadas, aparições em público com bonés “MAGA”, tweets que parecem ter sido escritos por ele completamente embriagado, um casamento em eterna ameaça de desmoronar e álbuns cancelados e postergados repetidamente. Simplesmente tudo parecia maior que sua música nos últimos 5 anos, principalmente sua marca de roupas. E o cristianismo. A figura para quem Kanye reza provavelmente é Jesus Cristo usando Yeezys e moletom de capuz.

Em suma, ele é uma pessoa completamente diferente do homem que 17 anos atrás lançou The College Dropout na contramão de tudo daquele determinado período. Lá, um jovem Kanye West com 27 anos, mesmo tendo recebido inúmeros “nãos” de diversas gravadoras por ser visto como apenas um produtor, deu vida a All Falls Down, rimando sobre sua luta contra o consumo e o materialismo, onde a coisa mais memorável da mixagem é a progressão de acordes de violão, em um mundo onde o Gangsta Rap ditava as regras do jogo, e versar sobre armas, mulheres e a importância do dinheiro eram pré-requisito para fazer sucesso dentro do gênero (generalizando, mas nem tanto. Pegue de exemplo P.I.M.P, 50 Cent).

Eis a ironia na personalidade dele. Parece que é inviável para Kanye seguir qualquer padrão normativo ou respeitar qualquer regra não escrita da vida (vide roubar o microfone da mão de uma cantora pra afirmar que ela não merecia o prêmio). Ele se opõe contra os arquétipos de qualquer época que seja, e por isso é, com toda certeza, o artista mais importante dessa geração. Por causa dele, indiscutivelmente, a roda sempre esteve girando e sem ele, J. Cole, Kendrick Lamar, Tyler the Creator e Brockhampton teriam uma carreira muito mais desafiadora pra chegar onde estão.

Mas se a pessoa Kanye West peca tanto em seus atos, muitos deles imperdoáveis (como inexplicavelmente levar Marylin Manson e DaBaby para se apresentarem na última Listening Party antes do álbum ser disponibilizado), por que sempre ouvimos o que ele tem a dizer? Outro escritor desse site, Marco Oliveira, esclareceu que o verdadeiro Kanye West (ou pelo menos sua essência) está em suas letras, o que eu completamente assino embaixo. Basta lê-las para acharmos o que procuramos. Hoje, West é alguém que sente saudade de sua mãe para ajudá-lo com a bagunça que é sua cabeça e com as cicatrizes de seu divórcio, enquanto se debruça sobre sua fé para pedir desculpas por algumas escolhas feitas pelo caminho.

I’ll be honest, we all liars
I’m pulled over and I got priors
Guess we goin’ down, guess who’s goin’ to jail?
Chorus:
Guess who’s goin’ to jail tonight?
Guess who’s goin’ to jail tonight?
Guess who’s goin’ to jail tonight?
God gon’ post my bail tonight
— Jail, Kanye West

Após 40 segundos de Syleena Johnson (a mesma que o acompanhou em All Falls Down cantando o refrão) repetindo o nome de Donda West sem nenhum instrumento em volta com o intuito de criar um tipo de Mantra, Jail abre as portas do purgatório com guitarras tão explosivas quanto as cenas de Mad Max: Fury Road, ressoando toda impulsividade do artista. O que inicialmente parece uma faixa sobre seu relacionamento, quando implica que ambos são mentirosos no primeiro verso, - e sorrateiramente salienta que só a sua fiança será paga no refrão - ganha em magnitude quando, inesperadamente, Jay-Z aparece para literalmente conversar com Donda antes mesmo de Kanye o fazer. Ali ele chega assumindo figurativamente a posição de pai limpando a barra do filho, como se West estivesse com certa vergonha do envolvimento com Donald Trump: “Hol' up, Donda, I'm with your baby when I touch back road, Told him, "Stop all of that red cap, we goin' home". Assuntos de família.

A partir daí, mesmo não inovando como fez sequencialmente durante toda sua carreira, Kanye nos entrega facilmente a melhor sequência musical do ano, começando em Jail até parar em Jonah. God Breathed on This é uma mistura dos vários predecessores de Donda, com uma polidez inacreditável. Carrega consigo a vibe de Yeezus, traz o 808 na mixagem minimalista, ecoa vozes como fez em Wolves (The Life of Pablo) e soa mais devoto e bíblico que basicamente tudo em Jesus Is King. É uma prece teatral e hipnótica. Já Off The Grid é fogo puro. Assentados sobre uma produção extremamente agressiva, a melhor versão de Playboy Carti e Fivio Foreign vem a tona. Seus versos são jogados na nossa cara de tal maneira que fica difícil respirar ao tentarmos acompanhar. Kanye, por sua vez, aparece mais como um complemento do que como dono da obra, falando sobre G6 no refrão e tirando o posto de “Like a G6” como a melhor música a falar sobre a droga (MDMA). Além disso, há espaço também para uma piada na última linha que me fez gargalhar: Some say A-A-Adam could never be bla-a-ack, 'Cause a black man'll never share his rib, rib, rib, rib, rib, rib.

Ainda dentro da sequência, The Weeknd aparece absolutamente angelical em Hurricane. O contraste entre a obscuridade da percussão e a luminosidade do órgão é quase quadridimensional. O verso de Kanye é tão inacreditável que se tornou impossível selecionar apenas um trecho pra colar aqui, então vocês vão ter que ir até o Genius ler. Após o desabafo de West, Abel se junta novamente ao coro e aos sintetizadores para pintar um momento etéreo. Logo depois que a faixa acaba é inevitável pensar: Meu Deus, Kanye West está fazendo de novo.

Mas assim que a emoção descontrolada atinge o coração dos desavisados, Donda expõe seus pontos baixos. Além de, como já dito, muito do que ouvimos aqui serem elementos derivados de outros momentos da carreira dele, algumas músicas narrativamente caem de paraquedas em algo que era pra ser conceitualmente um tributo à sua mãe, como Junya ,que parece mais um leftover de The Big Day, de Chance, The Rapper, e New Again, que parece um filho de Kanye West com o grupo Disclosure nascido em 2010. Ok Ok não demonstra um pingo de inspiração, em questão de produção e letra e Remote Control é provavelmente a pior música que Kanye West já fez em sua vida, sem exagero algum. Deveria ser passível de prisão perpétua ela estar entre duas das faixas mais emocionantes do álbum.

Contudo, a impressão que ainda fica é que esses pontos baixos são apenas imprevistos, pois momentos celestiais aparecem um após o outro em Donda - tornando o meme “Kanye West reduz o ateísmo a 0” perigosamente real por alguns instantes. Em 24, uma homenagem a Kobe Bryant (o jogador do Los Angeles Lakers usava a camisa 24 na NBA), que faleceu após um acidente de helicóptero, Kanye nos lembra o porquê de ser tão bom ouvi-lo cantando, mesmo que as vezes soe esquisito. Faz tudo na medida certa, vocalmente falando. O órgão e o coro tomam vida e se juntam a ele quase sem ar, claramente emocionado. Ao final, nos resta acreditar em Deus por 3 minutos e 17 segundos pra cantarmos junto sem cometer blasfêmia.

Moon equivale a todo pequeno momento precioso nas nossas vidas. Aqueles que sentimos vontade de guardar numa caixinha. Para toda singela ocasião onde o universo, inexplicavelmente, parece fazer sentido, e nós, no fundo do coração, parecemos invencíveis, é essa melodia que eu imagino tocando ao fundo. Kid Cudi e Kanye juntos, depois de Kid See Ghosts, não precisavam provar nada pra ninguém, mas isso não os impediu de se juntarem à Don Tolliver e criar uma uma das músicas mais lindas desse século.

Derradeiramente, o final de álbum é imaculado. Come To Life é irretocável e alcança o padrão imposto por Runaway, no que tange a beleza e peso emocional, lírica e instrumentalmente falando, mas arrisco a dizer que a penúltima música de Donda é mais crua, e consequentemente mais apoteótica. Diferente de MBDTF, e do contexto do álbum em questão, Kanye West hoje é um ser humano vulnerável. Por baixo da carcaça resistente, quase impenetrável, que ele mesmo foi moldando em volta de si ao longo de sua carreira, há muitos questionamentos e incertezas voltando para assombrá-lo. Há coisas a serem perdidas. Hoje, diferente daquela época, Kanye possui filhos (4, pra ser mais exato). Suas decisões não refletem mais só nele, e notamos isso nitidamente em sua voz, acompanhada por um piano que é uma das coisas mais lindas que já ouvi e por sintetizadores que contribuem para arrepiar todos os pelos do corpo. Ulterior a manifestação de uma fragilidade pouco vista antes, Kanye completa sua catarse com No Child Left Behind.

No primeiro verso de Come To Life, Kanye canta: Gotta make my mark 'fore I'm gone.

É completamente intrigante ouvir isso de alguém que marcou essa geração de todas as maneiras possíveis, sejam elas positivas ou negativas, e quase sempre deu a entender que sabia disso. Entretanto, mesmo que seja uma ideia incongruente, isso define exatamente quem Kanye West é. O antigo e o novo. O que sobreviveu a um acidente de carro e fez disso sua inspiração para gravar Through The Wire ainda com a boca fechada com pontos, o que se considera um Deus e demanda imediatamente seus croissants em I am a God, ou o que não sabe exatamente seu próximo passo, em Donda.

Kanye West necessita impactar quem o escuta. E isso ele sempre faz.

8.8

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