Crítica | Disque M Para Matar

o minimalismo por Hitchcock

Diretor consegue muito com pouco em Disque M Para Matar


É uma pena que não haja mais diretores prolíficos que combinem apelo comercial e autoralidade. Hong Sang Soo faz um filme por ano, mas não imagino nenhum grupo de amigos se juntando pra assistir ele numa sexta à noite - se você faz isso, reveja seu conceito de diversão.

Em quase três décadas de carreira, Fincher e Villeneuve têm 10 filmes, Tarantino tem 9, Shyamalan tem 14, Nolan tem 11. Todos juntos têm 54 em mais de 100 anos combinados, mesmo número que Hitchcock dirigiu sozinho em pouco mais de 50. Que pelo menos dois desses cinco são influenciados diretamente pelo mestre do suspense deixa a coisa ainda mais frustrante.

A questão é: parece haver hoje um vício pela grande produção, uma soberba desses grandes diretores de não se contentar em fazer filmes, mas OS FILMES. O que, ok eu acho, mas no fim, Hitchcock tem mais GRANDES FILMES e FILMES GRANDES que qualquer desses… e outras dezenas de pequenas jóias para serem descobertas além dos clássicos.

Disque M para Matar (1954), com seu título marcante justamente por parecer pertencer a um filme inferior, é uma dessas jóias. E no momento que é melhor que, digamos, no mínimo metade das obras dos cinco nomes acima (e eu adoro todos), dá pra se entender a dimensão da filmografia do Britânico.

O mais incrível é que o filme parece feito com tudo isso em mente. Se Janela Indiscreta (1954) se delicia com as possibilidades do cenário único e se torna um FILME GRANDE por maximizar elas, esse se diverte em minimizar o máximo possível sem sacrificar com isso o impacto dramático e tensional. 

Se Hitchcock quisesse expandir, teria mostrado o pai do Ricky Gervais seguindo o amigo, espiando a mulher infiel, trabalharia com o voyeur que ele gosta tanto, mas os primeiros trinta minutos são só conversa e é impressionante que só com o jogo de plano-contraplano ele consegue evocar todas essas psicoses e paranóias que escolhe não mostrar. O jeito que ele enquadra os dois, Milland com um leve plongée na diagonal que deixa o cara sinistro com o jogo de sombras, e Dawson num holandês bem de leve, como que deslocado e sendo enquadrado pra cair numa armadilha, é coisa de outro mundo.

Quando a câmera vai pro teto, e eles detalham o crime como que em uma maquete, a brincadeira atinge o auge. Mesmo detalhando tudo, mesmo sabendo o que faz o barulho na cozinha a noite, a cena que segue é enervante a ponto de nos fazer, também, questionar subconsciente e inevitavelmente de qual lado estamos. Wendice é claramente um psicopata, mas no melhor estilo Hitchcock, a mulher acaba sempre sendo a vítima de nossas expectativas.

Acaba se tornando também um filme do acaso e do imprevisto, em um jogo de detalhamento tanto de conteúdo como de forma, é algo que não vemos - as chaves - que acaba por desmontar todo o plano. Aí que entra John Williams, que mais do que se diverte com o inspetor que merecia uma série de filmes pra si só e que influenciou tantos outros - o Benoit Blanc de Knives Out me parece uma obviedade. Mas por mais que pareça claro que em algum momento tudo vai ser desvendado - tanto pela figura do inspetor, como do amante escritor de mistérios - Hitchcock consegue segurar a tensão e nossos desejos até o fim, com a figura de Grace Kelly, antes vista seminua (pra época) então aparecendo quase que enferma, trágica e desiludida com a morte iminente.

Instigante e divertido na mesma medida, Disque M Para Matar é um filme que, se fosse de outro diretor, certamente teria uma reputação maior. Mas competindo com as obras máximas de seu gênero e tendo a mesma alcunha ao seu lado, acaba sendo o que é. Um grande filme, mas que não é um filme grande.

9

*filme disponível na HBO MAX

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