Crítica | Spring In a Small Town

os resquícios do (des)afeto

Clássico de Fei Mu alia contexto sócio-político de uma China devastada pela guerra com as dores de um casamento sem amor.

Para se ter a ideia do extremismo esquerdo Chinês, basta saber que este é um filme considerado direitista a ponto de ter sido esquecido (de propósito) por anos. Foi apenas nos anos 80 que o filme voltou a ser exibido e hoje é considerado um dos grandes clássicos do Cinema do país.

Nele, um casal, a irmã mais velha do marido e um único empregado passam seus dias isolados no que sobrou do complexo familiar em ruínas, como legado da guerra entre China e Japão. Quando um antigo amigo do casal decide visitá-los, sentimentos do passado põem em cheque a vida que a família leva. 

Talvez um dos filmes mais anti-guerra que já vi, Spring In a Small Town faz isso com resquícios. Em um simbolismo apontado por muitos, tanto o muro que serve como refúgio para Yuwen, como as paredes destroçadas que servem de pano de fundo para Liyan, lembram a destruição provocada pela guerra e seu impacto naqueles que sobreviveram.

Se as cenas externas possuem uma liberdade enganosa embasada no absurdismo (e no legado da guerra), onde as repetições do dia a dia da cidade pequena fazem Yuwen questionar as escolhas da vida, as internas possuem uma sensualidade que se mistura com claustrofobia. Os personagens estão próximos, as mãos se tocam quase que involuntariamente, mas é uma proximidade que escancara o afastamento, seja ele emocional ou estrutural.

A decupagem de Fei Mu é ao mesmo tempo milimétrica e sensorial, mostrando os breves momentos de contato - físico ou apenas espacial - entre Yuwen e o marido, e tornando a tensão sexual dela com Zhichen algo que deveria, na época, ser considerado tão ofensivo como uma cena de nu frontal. Em um brilhante momento que foge da abordagem geral, fades na mesma cena precedem Godard e seus jump cuts, e vemos os dois em diferentes posições, elipses de tempo que enfatizam o tamanho de suas dúvidas, mas também a pureza do amor que sentem um pelo outro.

Pois além de crítico quanto à guerra, ou até mais, é um filme que questiona a rigidez cultural Chinesa, onde casamentos são organizados como um contrato. E Mu consegue, sem dedicar o papel de antagonista a nenhum dos três, nos mostrar que todos são vítimas das mesmas circunstâncias. Inclusive, um dos motivos de seu banimento pelo governo Chinês é justamente a ausência de um antagonista, sendo que, de maneira metafísica, o próprio país assume esse papel.

UM LIRISMO QUESTIONADOR

Um dos elementos mais discutidos do filme é justamente a narração de Yuwen, que dialoga até com uma linguagem mais moderna. Sendo o mais próximo de uma materialização de seus sentimentos é algo que, apesar de andar junto, ocorre quase que em paralelo com as imagens que descreve. Tem uma dor muito específica na voz dela, de uma mulher exausta, mas que se reprime para não externar o que sente. Chega a ser agoniante o quanto ela segura esses sentimentos que verbaliza, e quando esta inquietação se torna provação o filme atinge seus momentos mais intensos.

A atuação de Wei Wei (que segue firme e forte aos 99 anos!) está entre as mais complexas (e uma das minhas favoritas) da história do Cinema. Com expressões quase imutáveis ela consegue ir de um sofrimento quase insuportável pelos conflitos internos à uma sensualidade que conversa com a toxicidade que toma conta da mise-en-scène quando divide esta com Zhichen. Este que, encarnado por Li Wei, sugere um senso de lealdade e bondade apontados como Confucianos por muitos.

Valores que ela também tem, mas o peso da pequena cidade é, claro, mais forte nela do que nele.

Já Yu Shi, na pele do marido Dai Liyan, surge como a figura mais penosa do trio. Um homem ciente do próprio estado decadente, e com pouca ou qualquer força ou esperança para sair deste, a maneira como entende a relação da mulher com o amigo apresenta um altruísmo mais do que admirável. Por isso, nosso papel como espectador se torna mais difícil, é um filme profundo demais para relações tão simples, que entende as complexidades de seus personagens e nos faz entender suas compreensões e dúvidas por olhares tão naturais que assusta.

Para além de todas as suas qualidades, é um filme envolvente e com um impacto duradouro como as marcas da guerra que carrega. Uma guerra que é sentida não apenas no que foi destruído, mas naquilo que foi danificado para sempre. O espírito das pessoas, suas liberdades cortadas, as dores que surgem de vidas insatisfeitas, mas que não possuem qualquer norte além do muro em pedaços.

Apesar de considerar o final quase como um pensamento avulso, Spring In a Small Town é um dos melhores filmes dos anos 40. Uma obra prima sobre as falhas e inseguranças da vida que segue forte, e recorrente, até hoje.

9.9

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