Crítica | Amor, Sublime Amor (2021)
60 anos depois, os Sharks e os Jets voltam para a telona sob olhar atualizado de Spielberg para esse clássico.
A maior história de amor do mundo, “Amor, Sublime Amor” (2021) é uma adaptação tanto do filme (1961) e peça (1957) quanto do conto tradicional de Shakespeare, a história do amor interminável e impossível num cenário de conflitos urbanos e contemporâneos, agora atravessados pela olhar retrô aos anos 1950. Mantendo a maioria da estrutura original da história, Spielberg busca também inserir elementos atuais na narrativa, alguns com sucesso outros não, mas a maioria das escolhas são compreensivas para que esse filme alcance a maioria das pessoas em 2021, sem desrespeitar as versões anteriores da história de Tony e Maria. Com boas atuações e cenas grandiosas, muitos números de dança e uma excelente direção musical, “Amor, Sublime Amor” possui ritmo entre as cenas que potencializam elas, algo que era considerado um desafio em relação a versão dos anos 1960, que é lenta refletindo os costumes de roteiro da época, mas aqui, mesmo com quase 2h40 de duração, parece que há mais ação a cada momento de tela para os personagens. Com tudo isso, Spielberg parece ter tido alguma dificuldade em compreender a linguagem dos musicais e isso parece ter limitado algumas cenas pontuais, mas não de um jeito que atrapalhe o andamento do longa, outras escolhas são difíceis de entender e no geral nenhuma delas tem a ver com mudanças feitas para essa versão, o que dá certeza da segurança no trabalho feito.
Os Jets, gangue dos brancos, e os Sharks, grupo dos portorriquenhos, disputam o território de Upper West Side (o musical foi escrito por Bernstein e Sondheim antes da gentrificação expulsar esses grupos de Manhattan, algo comentado no filme), o primeiro grupo liderado por Riff (Mike Faist) e o segundo por Bernardo (David Alvarez), para por fim de uma vez por todas nas brigas, os dois marcam de ir a um baile combinar a batalha final, onde o grupo vencedor saíria com controle de tudo. Riff vai até a farmácia de Valentina (Rita Moreno), onde Tony (Ansel Egort) seu grande amigo e cofundador do Jets, agora aposentado, trabalha chamá-lo para ir ao baile ajudar na negociação, e mesmo relutando ele aceita. Nesse baile Tony e Maria (Rachel Zegler), irmã de Bernardo, se apaixonam à primeira vista, o que causa um tumulto entre Bernardo e Tony, horas depois o jovem encontra a janela de Maria e faz uma serenata para ela e os dois combinam de se encontrar no outro dia para fugirem juntos, mas quando Maria descobre da batalha entre as gangues ela pede para Tony tentar negociar uma paz. “Amor, Sublime Amor” é um conto de amor e ódio, assim como “Romeu e Julieta”, do qual é adaptado, o filme cria uma relação de antagonismo entre suas duas narrativas: a briga entre Sharks e Jets e o amor entre Tony e Maria, claro toda a relação entre os dois grupos é baseado em dualidade, o que marca no clímax do filme, “A boy like that / I have a love” quando Maria canta que o amor supera o bem e o mal.
O primeiro destaque positivo fica por conta do elenco, quase todo com atores estreantes no cinema, e liderado por Zegler, atriz escalada por Spielberg após um vídeo seu cantando ser enviado por Twitter para o diretor, sem nenhuma experiência atuando profissionalmente ela encanta como Maria, encarnando uma personagem forte, protagonista da própria vida, mas doce que acredita no amor e tudo isso misturando frases em inglês e espanhol (o roteiro faz questão do uso das duas línguas simultaneamente pelos personagem portorriquenhos), sua interpretação de “I feel pretty” é talvez mais charmosa e divertida que a versão de 1961, seu registro alto em “Tonight” e “One hand, one heart” enchem o som e criam harmonias incríveis com os instrumentos e o monólogo de Maria ao final do filme é de arrepiar, o que impressiona mais pensando sobre a experiência (ou falta dela) de Zegler. Além dela, uma turma de jovens atores da Broadway rouba a cena como Faist e Alvarez, mas a grande estrela de “Amor, Sublime Amor” é Ariana Debose, que interpreta Anita, amiga de Maria e namorada de Bernardo, a atriz que estreou no cinema ano passado em “Festa de Formatura” possui força magnética rara, e é o centro de todas cenas que aparece mesmo em grandes números como “America” e “The Dance at the Gym”, mostrando a bailarina espetacular que é com atuação digna de indicação ao Oscar, lembrando que, em 1961, Rita Moreno ganhou o prêmio pelo mesmo papel. O único ator que parece não estar a altura do papel é Ansel Elgort, “Amor, Sublime Amor” é uma história com certas armadilhas para quem a interpreta pois é ao mesmo tempo ingênuo e realista, sério mas com muito coração, Elgort porém parece nunca levar totalmente a sério a motivação e a trajetória de Tony, além disso, sua voz não está a altura dos seus colegas, nos duetos com Zegler muitas vezes é difícil de ouví-lo.
Steven Spielberg tem um currículo como nenhum outro em Hollywood, com uma variedade imensa de grandes filmes nos mais diversos gêneros e apesar de ter feito bons filmes na última década, parecia que há algum tempo o diretor não se empolgava com suas obras, sua direção parecia um tanto cansada, quem diria, então, que essa paixão seria reencontrada em um dos poucos gêneros que ele ainda não tinha trabalho, os musicais. Nitidamente ele e seu seu parceiro de longa data Tony Kushner, que assina o roteiro, se dedicaram muito para dar vida (em vários sentidos) a essa adaptação, e eu tenho certeza que esse é a melhor versão de “Amor, Sublime Amor” que poderia ter sido feita no contexto que foi feita e por isso eles merecem todos elogios que vêm recebendo nos últimos dias e certamente se seguirão quando o filme for lançado. Mesmo assim, sou obrigado a comentar como às vezes parece que o filme se sente desconfortável com sua própria essência e Spielberg não abre mão do tom realista da maioria dos seus filmes em troca da fantasia típica dos musicais. Isso é percebido no número “Tonight (quintet)”, super importante para a história mas que se perde na tentativa de impôr seriedade demais na atmosfera em volta dos personagens enquanto cantam suas motivações para o terceiro ato. Também dá pra ver isso observando o famoso “Prólogo” do filme de 1961 em comparação, a cena de abertura dos anos 60 é um marco no cinema por apresentar o conflito entre as duas gangues com dança, mas de maneira séria, o complicado número de ballet ganhou fama por saber se comunicar com o público subjetivamente, o conflito físico entre os dois grupos acontece ao final da cena de maneira muito breve antes de ser interrompido, na versão de 2021 Spielberg opta por rapidamente partir para a briga real. Claro que é uma decisão artística da parte dele, mas para mim representa a dificuldade de se adaptar a um gênero que age especialmente com imaginação e fora das regras do mundo real.
Há muito a se falar de “Amor, Sublime Amor”, algumas coisas funcionam melhor que outras, mas dentro de um ano em que tivemos muitos musicais com qualidades bastante diferentes me parece que aqui tenha se encontrado um equilíbrio bom entre grande produção hollywoodiana com um elenco bem montado, boa utilização de material original sem tirar a identidade daquilo que realmente importa e motivou a história ter tanto sucesso em primeiro lugar. No caso, como falei, é o conflito entre Sharks e Jets, Tony e Maria e a tese apresentada é sobre amor e ódio, o amor impossível e ódio profundo, enraizado na sociedade por racismo, pela exclusão social, pela falta de estrutura do estado em atender esses jovens (“Gee, Officer Krupke”) e, originalmente na versão de 2021, pela gentrificação os expulsando de Manhattan. Esses temas tão universais funcionaram no século XVI com Shakespeare, nos anos 50 com Bernstein e certamente seguem vivos em 2021 com Spielberg, que melhor que ninguém em Hollywood entende como lidar com o emocional do público do cinema e acertou em cheio mais uma vez em “Amor, Sublime Amor”, no fim West Side é um lugar para todos nós.