Crítica | O Som do Silêncio
Para todo e qualquer amante do cinema as notícias recentes da Warner, decidida a lançar todos os seus filmes de 2021 tanto nos cinemas como no HBO Max ao mesmo tempo, soam como mais um perigoso anúncio que traz, novamente, a pergunta à tona: o Cinema vai acabar? E apesar de esta ser uma pergunta sem resposta, ao menos por hora, é indiscutível que o streaming tem papel importante e “negativo” nessa situação, mas aqui tento olhar o copo meio cheio:
Não fosse a Amazon e talvez um dos melhores filmes de 2020 não chegaria em um ínfimo das pessoas que, agora, deve chegar.
Estou falando de “O Som do Silêncio”, primeiro longa de Darius Marder, escrito em parceria com alguém que, acredito, seja seu irmão chamado Abraham. Após sua estreia no Festival Internacional de Toronto, em 2019, a empresa de Jeff Bezos (que não poderia estar menos interessado no valor artístico da obra ou de qualquer outra, diga-se) adquiriu os direitos do filme, que conta a história de Ruben, baterista do duo Blackgammon que tem como outra integrante sua namorada. Após anos fazendo shows e vivendo uma vida hippie em um trailer, Ruben começa a experienciar a perda de sua audição, que coloca em cheque não apenas sua carreira, mas toda sua vida.
Com o título original de “Som do Metal”, o longa deveria ser o principal candidato às principais categorias de som do Oscar 2021, que tende a gostar de filmes de guerra e ação para estes, mas é simplesmente impossível ignorar o trabalho feito pela equipe comandada por Jaime Baksht, Nicolas Becker, Phillip Bladh e Maria Carolina Santana Caraballo-Gramcko. Mas antes de elogiá-lo devidamente, preciso fazer um contraponto à minha positividade anterior, pois este é um filme feito para a sala de cinema mais silenciosa possível, pois conforme Ruben perde gradativamente sua audição somos colocados em seu lugar, não apenas ao ouvir os mesmos sons, distorcidos e incômodos, mas ao entender como estes afetam sua vida em todas as escalas. Desde sua música, que se torna uma batida muda e quase imperceptível, ao olhar dele para a amada e um pensamento que, desconfio, passou por sua cabeça e que agora não sai mais da minha: e se não pudéssemos nunca mais ouvir a voz daqueles que amamos?
E Marder logo faz questão de nos mostrar que isso acontece de verdade, pois somos apresentados a uma comunidade onde todos seus integrantes experimentam uma vida sem sons e, curiosamente, ouvir suas conversas é uma experiência tão estrangeira para nós como deve ser, para eles, ouvir. Logo, “O Som do Silêncio” se transforma em um exercício de empatia, de se colocar no lugar do outro, mas mais ainda sobre a procura que todos fazemos acerca de nosso próprio lugar e propósito. Em uma conversa intensa com o fascinante Joe, que deveria render o mundo à seu intérprete Paul Raci, Ruben ouve deste que todos naquela comunidade não procuram uma solução para a audição, mas para o que está dentro de suas cabeças.
Esta inquietude - não consigo imaginar palavra melhor para descrevê-lo - não poderia ser melhor demonstrada do que pelos olhos arregalados de Riz Ahmed, que parece apavorado com o mundo novo a que é apresentado. Ansioso e impulsivo, o ator britânico, de descendência paquistanesa, ilustra todo o incômodo do personagem, que apesar de ter passado um tempo na academia e tomar suco detox no café da manhã aparenta estar frágil, algo acentuado pelos olhos gigantes e o cabelo descolorido. Um personagem fascinante por si só, descobrir suas dezenas de tatuagens ao longo do filme é um exercício divertido para admiradores desta arte, mas grifo especialmente uma frase em seu peito que diz “por favor, me mate”. Mas Ruben e sua parceira Lou (interpretada com afeto por Olivia Cooke), não poderiam contradizer mais o pedido marcado na pele do baterista, pois o que mais demonstram é vontade de viver. Visivelmente apaixonados um pelo outro e pela arte que criam juntos, podemos também ver como dependem um do outro, mesmo que por motivos diferentes. Ela o salvou, possivelmente, da morte pelo vício em drogas. Ele a salvou, quem sabe, de si mesma. O que torna a barreira sonora entre ambos algo ainda mais dolorido de se assistir.
Além de tematicamente complexo, “O Som do Silêncio” também evidencia o talento de seu cineasta por trás das câmeras. Aliado à fotografia de Daniël Bouquet, Marder é capaz de ilustrar de maneira eficaz a melancolia que toma conta do mundo do músico, desde a paleta de cores acinzentada à maneira como abre a câmera apenas o necessário, sem nunca dar a seus personagens qualquer sensação de espaço. Como exemplo, o trailer que o casal dividia, antes aconchegante e caloroso, se torna uma antítese, ao mesmo tempo claustrofóbico e vazio. Porém, com duas horas de projeção, um dos poucos problemas, mas que ocorre de maneira recorrente, é a sensação da passagem de tempo, crucial na busca de qualquer personagem por paz interior. Além disso, apesar de balancear bem os momentos difíceis com outros pequenos sinais de esperança (a cena onde Ruben troca batidas com um menino é comovente), Marder falha em nos fazer visualizar estas mudanças, o que não parece ser sincero quanto ao estado de espírito de seu personagem principal. Nunca senti como se aquela experiência fosse algo pesaroso e leviano para Ruben, mas o filme parece sugerir isso em alguns momentos.
Com um elenco formidável composto em sua maioria por deficientes auditivos (destaque para a divertida Chelsea Lee e para a doce Lauren Ridloff), me pergunto o quanto estes podem, também, apreciar o filme. Pois apesar de ilustrar a dificuldade de seu protagonista em se adaptar à sua nova condição, “O Som do Silêncio” deve conversar de maneira ainda mais profunda com alguém que tenha vivenciado uma experiência parecida. Desconfio, também, que a cena final deve se mostrar ainda mais potente para estas pessoas (e falo de spoilers a seguir), pois após recuperar parte de sua audição e ver que sua vida passada ficará lá, no passado, Ruben finalmente entende o que Joe havia lhe falado.