Crítica | Morra, Amor (2025)

Fazendo as pazes com a luz

Com uma inspirada Jennifer Lawrence, Lynne Ramsay descobre uma coisa ou outra sobre a luz


Assisti dois filmes no mesmo dia que fazem contato com Jean Claude Brisseau. O primeiro deles foi Forever Amber (1947), de Otto Preminger, um elo pouco comentado entre o diretor francês e Kenji Mizoguchi, que mostra a ascensão de uma mulher na monarquia britânica durante a guerra civil.

Estruturado quase como um filme mudo do início dos anos 1910, o filme vai e vem como as ondas na praia do mar que não muda. Amber, com seu nome de brasa e seus cabelos ruivos potencializados pelo processo de coloração, ascende socialmente ao mesmo tempo que tem de decair moralmente, uma dicotomia que faz desse um dos filmes mais interessantes de todos os anos 40, se apenas por tensionar as possibilidades de dois diretores que poderiam ser muitos distintos.

O segundo é este de Lynne Ramsay, sobre um casal ainda jovem que, após ter seu primeiro filho, vê a relação se deteriorar conforme se tornam fisicamente distantes um do outro e a esposa passa a ter alucinações, princípio de uma depressão pós parto. É apenas o segundo filme que vejo de Lynne Ramsay, mas me agrada como a cineasta não deixa que o filme seja tomado e/ou pautado por seu tema, ao menos não como maneira de capitalizar em cima dele. Talvez seja meu distanciamento das redes sociais, mas antes de assistir ao filme, nem sabia do que se tratava, o que é um ótimo sinal.

Mas não “capitalizar” em cima de seu tema não significa que o filme não se deixe governar por ele. A organização interna das cenas, da estrutura, do tom é todo a partir da questão patológica envolvendo a personagem de Jennifer Lawrence, que praticamente revive seu personagem de Mãe (2017) - e é curioso que, entre esses dois e a comédia romântica Que Horas Eu Te Pego (2023), todos os problemas de suas protagonistas surjam do afastamento sexual dela e de seus parceiros. O resultado é uma homogeneidade insistente, um filme que tem questões narrativas e dramáticas, mas que as filma sem dá-las maior interesse.

Este reside mais na capacidade de Ramsay de encontrar belos enquadramentos: pois se o filtro usado para as cenas noturnas é preguiçoso, desde o primeiro plano na casa, àqueles dos personagens conversando no carro, Ramsay resgata uma espécie de classicismo no enquadrar, que dá substância ao academicismo de sua premissa e cenário. Se pensarmos, não é um filme muito diferente de uma água com açúcar como Nomadland (2020): mulher deslocada do mundo sofrendo com o passar do tempo. Mas há, aqui, uma força incisiva na construção das imagens a partir do espaço, há a intenção de enquadrar as coisas de maneira que o quadro seja mais importante que sua dissolução no tempo. Podemos ver várias cenas cotidianas, mas cada uma tem um peso gravitacional importante.

Uma pena que o filme não ofereça saídas narrativas, dramáticas, estilísticas para o problema da protagonista. Parece um grande nada, nesse sentido: ela tem depressão pós parto, e é isso aí. Contando com uns cinco finais diferentes, meu preferido é a conciliação com a dança, e o que menos gosto é o oficial: Lawrence caminhando como na cena final de A Bruxa (2015) em direção a uma floresta em chamas é uma metáfora/saída óbvia e estúpida demais para um filme que, se qualquer coisa, parece tão pouco interessado em apelar para esse tipo de coisa.

Mas onde entra Brisseau? Naquele belo plano de Lawrence na janela (que não consegui encontrar para adicionar aqui), em meio às cortinas. Em como a seda refrata, difunde, suaviza a luz que a contorna e penetra no quarto. Em como a própria posição de Lawrence remete àquela que vemos em Céline (1992), em como o olhar na janela se torna uma imagem independente, que provoca uma sensação própria, aquém da progressão narrativa.

Brisseau entra também nas aparições (que na verdade são projeções) que a assombram e a atraem. No modo como a luz entra na casa nas diferentes partes do dia, e como o celuloide reage à essa luz. Nisso, Ramsay consegue ser íntima e provocadora, consegue justificar o uso de película que não só um preciosismo destruído pelas possibilidades do digital (como fizeram Nolan, PTA, Scorsese, nos seus últimos filmes). É nisso que reside sua força como cineasta, e não em se aproximar de qualquer conversa mais pertencente a filmes menos potentes.

Uma pena que voltemos ao mesmo problema que assola praticamente todos os outros “cineastas grandes”: se ela fizesse uns dez desses, o décimo muito provavelmente seria um grande filme. Vamos ver quantos anos até fazer o próximo.

Próximo
Próximo

Crítica | Caro Diario (1993)