Crítica | Caro Diario (1993)

A Itália, a arte, o homem

Moretti busca o tempo que ainda não se perdeu


Nestes últimos dois anos redescobri o que é uma das minhas atividades favoritas: caminhar, com um rumo vagamente definido, por ruas que nunca caminhei antes. Ou talvez redescobrir não seja a palavra. Foi mais um processo de reconhecimento, e menos um processo do que um estalo, uma pequena e pouco chamativa (e/ou marcante) epifania. O fato é que agora sei, agora tenho em mim que caminhar é um ato aproximativo e mais acessível da minha vontade, essa sim, redescoberta, de viajar e conhecer o mundo.

Redescobrir. Tiramos o primeiro prefixo, re, que indica repetição, e ficamos com descobrir. Tiramos o segundo prefixo, des, que indica oposição e/ou o ato de contrariar, e ficamos com cobrir. Um desejo que foi coberto por muito tempo, um prazer, que se confunde com objetivo de vida, que me auto-neguei por questões pessoais e sociais (vamos da crise na segurança de Porto Alegre na década passada à pandemia no início desta). Sua descoberta, no entanto, veio muito antes, em 2011, quando fiz minha primeira viagem “sozinho”, aos 14 anos. Vaguear logo se tornou minha atividade favorita: a sensação de estar, de alguma forma, perdido e desconectado do mundo que se conhece, para então se conectar com o mundo que se apresenta.

Redescoberto, então. Vaguear me faz sentir vivo. O conhecer o mundo, que é sempre mais potente quando este mundo é distante e diferente, segue sendo conhecer quando este mundo é próximo e semelhante. Caminhando por ruas novas, ou mesmo por ruas familiares, e mediante as leituras que ando fazendo sobre arquitetura, urbanismo e natureza, agora me pergunto: porque um prédio é de um jeito? Porque uma rua é de outro? 

O interesse cosmológico sempre esteve presente: desde que jogava Sim City no computador que tínhamos na sala da minha antiga casa, às noites de Minecraft inventando mundos, às indagações que fazia nas longas viagens de carro que fiz pela vida. Nas quais jogava dois jogos: um, de me imaginar morando nos mais aleatórios cantos que visitava, outro, esse jogado à noite, de olhar para dentro de matagais e suas casas isoladas até que me assustasse o suficiente para virar para a janela do outro lado.


O primeiro terço deste que é meu segundo filme de Nanni Moretti mostra o diretor andando com sua motoneta (batizada vespa) pelas ruas desertas de Roma no Verão, onde boa parte de seus habitantes vão às belas praias italianas. Não sei se há país no mundo do qual sua mera visão seja veículo de transporte para o passado como a Itália. Passear por Roma, ou Veneza, ou Florença, é como passear por um museu a céu aberto da própria civilização, como ser transportado para eras tão dramáticas quanto esta, mas mais pomposas, suntuosas, agraciadas pelo apogeu da arte.

Conforme conduz a motoneta e narra o que vê em um fluxo de pensamento aparentemente frívolo e aleatório, Moretti atesta a erosão do tempo sobre o que hoje soa como um passado glorioso. Temos as esplendorosas imagens da Itália Renascentista como memória de uma época onde não havia saneamento, mas a modernização de Roma é para o autor, e para nós muitas vezes em nossas respectivas cidades, um aspecto da decadência humana. Mas deixamos de lado a barbárie e a precariedade da vida cotidiana nestes tempos longínquos, e ficamos com aquilo e aqueles que se encarregaram de deixar para o futuro, agora presente, sinais de sua inestimável existência. Pela nostalgia (que agora é o que resta também ao futebol italiano), o passado pode ser manchado de sangue, mas é marcado por glória.

De volta ao presente, sempre decadente. O é por ser vivido com os problemas dos quais não ouvimos falar de outras épocas. No caso de Moretti: a gentrificação, o êxodo sazonal (que há de assombrar a segunda parte do filme), a rasura do pensamento crítico, afetado de maneira aparentemente irreversível pela televisão. A internet se tornaria pública um ano após o lançamento do filme, mas Moretti já expressava seu desgosto com o atual estado da única arte que, em plenos anos 90, ainda parecia capaz de movimentar o mundo. Foram se as épocas dos grandes monumentos, chegou a época do true crime. Não é mais necessário passar anos como aprendiz de artista, basta o ser.

Essa primeira parte de Caro Diario, filme com um dos mais puros e fidedignos dos títulos, é também a mais livre. Passeamos com liberdade e certo ar cômico pelas ruas vazias de Roma, seguindo o diretor como se o seguíssemos. Pelo contraplano, parece que entramos em sua mente, um tanto quanto flutuante, despreocupada a ponto de abordar mulheres aleatoriamente na rua em busca de Jennifer Beals, a protagonista de Flashdance. A encontrar, nesse filme, é algo como que entre a aparição de Gene Kelly em Duas Garotas Românticas (1967) e a desaparição de Na Cidade de Sylvia (2007). Lá se vão 40 anos.

Ao final do capítulo, Moretti vai ao local onde Pasolini, cineasta que misturava poesia e política como poucos ou talvez nenhum, foi assassinado. Revendo a cena em uma cópia ruim no Youtube e com meu italiano ainda em construção, acreditei ter ouvido Moretti dizer algo como “não sei porque mas não há uma estátua onde foi morto Pasolini”. Aparentemente, após checar online, o que ele diz é que não sabe porque nunca foi ao local. Ainda assim, dou sequência ao que achei ter ouvido: desde 1993 (desde antes, na verdade), não erguemos mais monumentos, mas batizamos ruas e rodovias.

A cena em questão se inicia com algumas mãos passando as manchetes de diferentes jornais acerca da morte de Pasolini, e segue com a que é talvez a sequência mais desprovida de beleza de todo o filme, enquanto figura como seu momento mais imponentemente belo. Moretti dirige por ruas menos glamurosas, de construções baixas e chão batido, com uma trilha um tanto agitada no piano transformando a feiura em melancolia. Sua vagueação sem rumo, tinha um rumo: buscar os resquícios de um passado do qual temos apenas monumentos. E estes nem mais.


Na segunda porção do filme, Moretti se isola em diferentes ilhas (que, em italiano, aproxima mais as duas palavras: isole) para trabalhar em seu próximo filme, junto a um amigo que estuda James Joyce e quer ficar longe da televisão. Este mesmo amigo, no final desta segunda seção, acaba confessando seu amor pela novela.

Eventualmente, entre belas paisagens e situações mundanas, os dois chegam à Stromboli, pequena ilha marcada por um gigantesco vulcão, eternizado no cinema como pano de fundo para o rosto de Ingrid Bergman, a mais sublime das atrizes. Em busca de arte, eles se isolam da civilização em lugares onde o presente não conseguiu romper com o passado, onde a tecnologia não conseguiu domar a natureza. Mas não é inspiração que buscam, e sim paz.

Minha relação com a praia, na ausência de ilhas acessíveis no sul do Brasil, não é muito diferente. Há algo no som do mar, em estar rodeado por sua vastidão, que parece oferecer proteção a todos problemas, presos nas ruas e fios da cidade grande.

Até ali, estava gostando do filme com considerável curiosidade: menos por um domínio das formas de Moretti - cineasta político que parece fazer filmes estruturados de maneira desafiadora, mas compostos de vinhetas e situações que se tornam palatáveis pela liberdade cênica - e mais por como faz do filme uma inserção de si mesmo, ao passo que insere em si mesmo os acontecimentos do filme. Que, por acaso, parecem conversar muito com minha própria experiência neste mundo.

Mas aí chegamos à porção final: após o vaguear e o se isolar, após investigar a civilização e a natureza, Moretti tem de investigar a si próprio.


Em 2020, após ter de voltar ao país precocemente por causa da pandemia, que me impediu de seguir realizando meu sonho de estudar fora (e que me impediu, também, de conhecer o Japão), tive uma crise urticária que me impedia de fazer a menor das atividades. Não conseguia fazer amor. Tinha que ministrar aulas online com um pano gelado ao lado, em pleno inverno. Não conseguia caminhar na rua.

Moretti, assim como eu 27 anos depois, vai em uma série de médicos, testa uma série de tratamentos, mas nada parece surtir efeito. O filme perde a liberdade, troca a infinita finitude da cidade e a contida vastidão das ilhas pelos limites enlouquecedores de cômodos com souvenirs da vida cotidiana: de livros à recibos à parafernalha, relíquias sem importância, fadadas ao esquecimento e a se empilhar infinitamente. Mais do que isso, sua prisão se torna o próprio corpo. Perde-se o movimento, perde-se a liberdade. Não se pode nem dormir, muito menos sonhar.

E nem toda a tecnologia da civilização moderna é capaz de descobrir a causa - no caso de Moretti, um tumor, no meu, até hoje sem solução, apenas agradeço que a crise passou. Ao final do filme, rodeado de remédios inúteis, Moretti encerra as coisas sem qualquer tipo de revelação. A que eu tive é que, em 1993, três anos antes de eu nascer e hoje, 29 anos depois, não erguemos mais monumentos, mas ao menos temos farmácias.

A decadência do presente reside em este se tornar, imediatamente, passado. O passado é glorioso porque já o foi, porque a dor do ir já não está mais presente. Erguemos monumentos, esculpimos rostos, pintamos as cores, cantamos as músicas, escrevemos as palavras para lembrar que estamos vivos. Mas viver é, também, deixar de viver. Termino o texto, e vou dar uma vagueada.

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