Crítica | Um Filme Falado (2003)
UMA LIÇÃO DE HISTÓRIA
E geografia, e arte, e linguagem, e genética.
A primeira imagem de Um Filme Falado nos coloca à bordo de um navio: como se o filme começasse pelo contraplano, vemos figurantes dando adeus às pessoas que iniciam ali uma viagem sabe se lá para onde, e é apenas após o fim dos créditos que vemos as protagonistas: mãe e filha, olhando sem nenhuma expressão imediatamente reconhecível para o grupo de pessoas em terra. O mesmo contraplano retorna ao final do filme, de maneira inversa: o plano se torna o rosto do homem que olha, aterrorizado, com o destino que chega para as duas.
Entre estes dois momentos, um filme de aprendizados: a mãe é professora de história e, conforme ela e a filha passeiam por diferentes locais que ela “tinha visto apenas nos livros”, ensina a pequena sobre a natureza das construções que visitam. Ruínas gregas, pirâmides egípcias, catedrais e igrejas cuja religião foi alterada mediante os confrontos políticos de cada região. O pensamento, conforme assistia o filme, variou para dois lados:
O primeiro, em qual seria a diferença deste filme-passeio para um infomercial ou, pior ainda, para uma daquelas obras enlatadas, proliferadas pela Netflix, feitas como vitrines de lugares turísticos. A diferença reside, como tudo no cinema, na encenação. Sendo apenas o meu segundo filme de Manoel de Oliveira (o primeiro foi Francisca), me carece o conhecimento para comentar sobre as andanças de seu cinema, e posso responder apenas pelo que vi no longa.
Falando em português com a filha, a mãe é constantemente abordada por diferentes homens, que se apresentam, sempre educados, com o intuito de auxiliar nas explicações - qualquer outra intenção fica a cargo do espectador decifrar nos planos médios, pois Oliveira nunca acusa a expressão humana com intervenções de câmera ou de montagem. A lógica das cenas é simples e remete a um classicismo tardio, contemporâneo. Ao retratar a arte clássica grega, Oliveira rejeita a modernidade e o maneirismo: não há qualquer intenção de romper, exorcizar ou reler a arte do passado. Sua intenção é apenas mostrar.
Podemos observar isso em como filma de maneira estática, sem incidir a câmera e o aparato tecnológico nas imagens (como fazem, por exemplo, Luchino Visconti, Dario Argento e Paolo Sorrentino, para citar alguns), e sem exigir uma movimentação rigorosa de seus atores, livres para interagir e reagir ao ambiente. Mãe e filha olham, e nós vemos o que elas veem, mas nunca em um sentido de contraplano - durante toda a primeira metade do filme, Oliveira não gira a câmera a 180 graus uma única vez, fora o plano inicial. Mãe e filha caminham, e as estruturas gigantescas seguem lá, imóveis e imutáveis, embora com as marcas impiedosas do tempo. Quando sem diálogos discerníveis, à mercê do som ambiente, a impressão é que os turistas se confundem com a paisagem, alçando o filme a uma espécie de anacronismo documental, com pessoas de hoje (encenando pessoas de hoje) habitando as ruínas de civilizações antigas que antes pulsavam com vida.
Pois, e chegamos ao segundo pensamento, no momento que entram na Hagia Sofia, e mãe mostra para filha as demarcações que alteraram o intuito do templo - que foi dos cristãos aos muçulmanos -, uma terceira mudança acontece: povoado por turistas, o que antes era um espaço de adoração a um mundo desconhecido se torna sua versão farsante: um turista, não religioso, não entra na Hagia Sofia para rezar, mas para ver onde, e como, se rezava. Uma catedral, onde supostamente é possível estar mais perto do céu, transformada em uma instalação, em um museu.
Na cena seguinte, Oliveira propõe uma nova desconstrução do passado, sempre o mostrando em sua integridade: em plano estático, mãe e filha tomam um suco frente às pirâmides do Egito. Antes um portal para a vida após a morte, agora um cenário de fundo. Antes, um monumento da capacidade e da expressão humana (a primeira subjugada à segunda), agora um lembrete.
O que me remeteram ambas estas cenas é como, na antiguidade, edifícios eram levantados como maneira de simbolizar, ou mesmo influenciar, nossa relação com o mundo. Torpes que tenham sido os motivos - basta descobrir como as catedrais góticas eram pensadas para que os fiéis se sentissem mais próximo dos céus -, havia algo de belo em como o ser humano unia suas capacidades. Interessante seria se hoje, na era do conhecimento, o dinheiro e o esforço hercúleo para a construção de uma pirâmide fosse revertido em prol da humanidade. O que acontece, no entanto, é apenas uma substituição: não erguemos mais edifícios para expressar nossa visão de mundo, também torpe como seja, mas para o funcionamento de nossa “evoluída” civilização. E assim fomos da magnitude, do sublime, em direção ao funcional, ao eficaz.
Nessa primeira parte de Um Filme Falado vemos a falência da expressão humana (em especial, da arquitetura) em relação à conquista da Torre de Babel. Quanto mais globalizado, quanto mais comunicado, menos há a necessidade de se expressar. Ao que a segunda parte do filme, agora refletindo, me parece um complemento não apenas fidedigno, mas talvez o único possível.
Agora à bordo do navio, mãe e filha são convidadas pelo capitão a sentar à mesa com outras três mulheres: todas interpretadas por atrizes famosas, musas de outrora cuja velhice lhes cai como aos monumentos que vimos anteriormente no filme. Uma fala Grego, outra Italiano, outra Francês (Catherine Deneuve, com sua bela tristeza como nos melhores Demy e sua sutil malícia como nos melhores Buñuel). O capitão, um estadunidense interpretado por John Malkovich, conduz a conversa como o cinema americano conduz suas influências: pode até entendê-las, mas é incapaz de reproduzi-las. Recorrendo então ao uso do contraplano - embora não necessariamente dentro do eixo -, Oliveira isola, vez que outra, as personagens que detém, momentaneamente, o poder da fala, até que Irene Papas se levanta e, a pedidos, canta uma bela canção em sua língua materna (o Grego que, como ela lembra, consiste em boa parte do alfabeto ocidental e por pouco não foi o idioma oficial dos Estados Unidos). O plano é contínuo, a câmera dançando com Irene conforme ela vai e vem pelo restaurante, mas a mesma clareza presentes nos planos estáticos permanece: aquela era a única forma de filmar a cena sem que a câmera incidisse sobre ela, sem que se tornasse exclusivamente sobre seu aparato (e é curioso apontar como a encenação do filme se assemelha à de Hong Sang-soo, mas como ainda é imensuravelmente distinta).
Eventualmente, o capitão é chamado e descobrimos haver uma bomba no navio. Todos devem fazer o caminho de evacuação, mas após irem do quarto até a porta de saída, a mãe tem de voltar pela filha que voltou pela boneca - presente recebido no jantar poliglota. Oliveira refilma o percurso três vezes: primeiro das duas subindo, então descendo e então subindo de novo. Invertendo mais um famoso dizer, a farsa (a boneca, a subida em falso para o deque, a versão fantasmática de Eurídice que ficou para trás) dá lugar à tragédia.
Mãe e filha, filmadas com a mesma distância que os figurantes no primeiro plano do filme, e então falecidas pelo olhar do capitão estadunidense. Do sublime de outrora, da harmonia, da busca pelo belo, ao olhar de terror e desespero do hoje.