Rachmaninoff | Concerto para Piano nº 2 em dó menor, Op. 18


Não sei se para você também, mas para mim, a música clássica nasceu antes de tudo.


Lembro primeiro do meu pai, que fez brotar nos meus ouvidos o apreço por todas as coisas que fazem barulho, que produzem ritmo, que falam mais do que as palavras podem explicar. Depois, lembro do piano. Especificamente a peça Mahoney's Debut de Alexandre Desplat e Aaron Zigman, tema central do filme A Loja Mágica de Brinquedos. Agora, muitos anos depois, sem meu pai e com pouco tempo para os filmes, vejo nas ideias de Rachmaninoff um sentimentalismo que parece grande demais para caber nas palavras. 

Sergei Rachmaninoff foi um romântico tardio. Não por, assim como eu, estar sempre atrasado, mas porque suas obras datam a fase final do romantismo. Tal traço, além de parecer muito bonito na narrativa, é admirado no Concerto para Piano nº 2 em dó menor, Op. 18, tema desse texto e conhecido como uma das maiores love songs de todos os tempos - apesar de não ter ligação direta com a paixão romântica.

Antes de falarmos da obra, e a título de curiosidade acho interessante que você, leitor, saiba a diferença entre uma sinfonia e um concerto: sinfonia é uma obra orquestral que distribui o protagonismo entre todos os instrumentos. Normalmente dividida em 4 fases chamadas de movimentos, as sinfonias expressam grandes ideias sonoras. Rachmaninoff, por exemplo, compôs a Sinfonia nº 2 em Mi menor, Op. 27.

Enquanto a sinfonia apresenta uma ideia geral, no concerto um protagonista se destaca ao conduzir o debate entre os instrumentos, como em uma conversa de bar. Depois de uma ou duas provocações, todos se veem argumentando sobre o drama do solista. Convenientemente, o tema que tem dono não recebe tantas fases, e se encerra no terceiro movimento. Rápido, Lento e Rápido. No caso de Rachmaninoff: ideia, oposição e resolução.

Acho bonito, em específico, o uso do termo “ideia” na música. Se estivéssemos analisando a filosofia, falaríamos de uma forma imutável e perfeita, mas na música é um sentimento que muda e se desenvolve a depender de quem o conduz e quem o acompanha. Em outras palavras, às vezes precisamos encontrar quem nos ajude a crescer para além de nós mesmos; para mim, nesse caso, o clássico do início do Século XX funciona perfeitamente.

Muito antes de lançar seu segundo e aclamado concerto, Rachmaninoff já era um prodígio. A trajetória da sua carreira até o Concerto para Piano nº 1 em fá sustenido menor, Op. 1, é reflexo disso. Mas Sergei ainda era estudante e tinha apenas 18 anos quando enfrentou o fracasso. Curiosamente, três coisas nesse parágrafo levam o número 1: seu concerto, sua idade e a sua primeira crise.

"Que se danem! Não sei escrever sinfonias e, além disso, não tenho nenhum desejo real de escrevê-las" - Rachmaninoff em carta.

Essa frase poderia ser minha, se no lugar de “sinfonias", houvesse qualquer variação “textual". A diferença entre Sergei e eu é que, apesar de muito influenciados pelo desejo de aprovação e sucesso, apenas um de nós deu certo. E quando digo “deu certo”, não me leve a mal. Neste momento, muitas coisas além do medo do fracasso e da falta de confiança nas próprias criações, nos ligam.

Talvez pela imaturidade nas suas composições, mas também por muitos outros fatores externos, a decepção com a própria imagem e com a sua forma criativa após o primeiro concerto resultou em uma depressão que o afastou das composições por três anos. Foi com a ajuda de um médico psiquiatra, Nikolay Dahl, que Rachmaninoff encontrou um meio para superar a depressão e a partir do luto da imagem ideal, da perfeição, nasceu algo muito maior que ele: o artista. 

Como alguém que trabalha com o uso extensivo da criatividade, tanto nas palavras quanto na concepção e narrativa das próprias histórias, sou tocada de muitas maneiras pela perda do “eu” para o “outro”. Quando tudo o que temos confronta parte do que somos, é impossível não sentir que o fracasso da criação, também é o fracasso da existência do criador. Provavelmente Freud já falou algo sobre isso com palavras melhores (e com uma pitada de machismo), mas percebo nessa dinâmica um processo agoniante e também bonito de amadurecimento.

Acredito que quem cresce enfrenta eventualmente a solidão. Não que estar sozinho seja de todo mal, mas dificilmente ficamos felizes ao confrontar nossas expectativas sobre nós mesmos. Essa solidão é inteiramente nossa, ou pelo menos deveria ser. No caso de Rachmaninoff, é dele e de um piano com notas que crescem, se arrastam, caminham e correm rumo ao extraordinário.


O Concerto Para Piano, n°2 em Dó menor, dura cerca de 35 minutos e se divide em três partes. A primeira é o Moderato, característico de obras com complexidade emocional, onde ele apresenta a primeira ideia. O piano estabelece um tom denso e dramático, que ganha forma ao longo das notas. Como se o sentimento estivesse enclausurado em busca de liberdade, a rapidez da composição aparece logo nos primeiros momentos e cresce, alternando entre a fragilidade e a rigidez. Tudo é grandioso.

A segunda é o Adagio Sostenuto, que entrega a parte mais conhecida e romântica da composição, na qual a melodia ganha um tom lírico e sonhador. Particularmente, vejo nessa fase o conflito entre o êxtase, o sonho e o desencanto. A ideia é otimista, inicia tímida e se intensifica enquanto clama por uma resolução, sensação que aparece principalmente quando as notas acendem, se deslocando da esquerda para a direita. No Adagio, o piano tem um número menor de acompanhantes em comparação com os outros movimentos, com destaque para o clarinete e a flauta, que aparecem em evidência. Esse distanciamento momentâneo permite uma “conversa” entre o solista e a orquestra, o que amplia a completude do clímax. 

Por fim, o Alegro Scherzando é responsável por completar a redenção do protagonista. Ele inicia enérgico e divertido, mas se desenvolve demonstrando outras nuances nostálgicas. Assim como os outros movimentos do Concerto Para Piano n°2 em Dó menor, ele propõe uma finalização gloriosa. Na tradução literal do italiano, “Scherzo”, significa “piada”; por isso, o tom “Alegre e brincalhão” permeia os onze minutos da peça. Esse é o fim da jornada do herói, para Sergei foi o recomeço e talvez, com sorte, para mim também.

O concerto me toca por muitas razões, mas a principal é a sensação de estar no céu, algo que o piano me proporciona acima de todos os instrumentos. Se fecho os olhos sinto o coração percorrer as teclas como se estivesse ali, nas mãos do pianista e como se tudo o que me cerca deixasse de existir, por alguns minutos, somos apenas nós. Um que alcançou o êxito e outro que espera alcançar.

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