Jeanne Dielman, 1085, Rua Demétrio Ribeiro, Porto Alegre 

Depois de Jeanne Dielman, eu também parei de agir como uma máquina.


Em uma sala de estar, os móveis e paredes são cheios de cores violeta, azul, verde e vermelho, construindo um ambiente fechado, quase claustrofóbico. As cortinas seladas, assim como os lábios de Jeanne Dielman, não se movem; elas sufocam junto com todos os outros móveis. Há um vaso de flores que fica exatamente no centro da sala de estar, quase em perfeita simetria com o olhar do espectador. Ele nos encara; a mulher, não.

O enquadramento nos deixa enclausurados. Conseguimos ver tudo o que se passa naquela sala de estar; nada nos permite olhar para fora. Estamos presos, obrigados a contemplar o confinamento que  ocupa, e surge uma certa vergonha, nela ou no público, de que aquilo não deveria estar sendo visto por ninguém.

O silêncio, assim como os mínimos ruídos vindos da rua, nos causa um certo desconforto, o  ambiente não parece natural. O cômodo parece ter mais carne pulsante que a própria mulher sentada. Ela é como um corpo oco, meio viva, meio morta, incapaz de alcançar a vitalidade presente nas coisas ao seu redor, inerte ao seu próprio eu. Jeanne, estática, parece que, pela primeira vez em todo o filme, se permite respirar em meio aos próprios pensamentos e parar de agir como uma máquina.

Nesse momento, na sala de cinema, enquanto a assistia, percebi que estávamos pensando na mesma sintonia. Respirávamos juntas, éramos uma só carne pulsante; ela parecia ganhar vida através de mim. E então me veio à cabeça que nenhuma imagem, em toda a história do cinema, é mais bonita do que essa: a de uma mulher pensando.

É mágico como um personagem de um filme pode alterar o rumo do nosso olhar, nem que seja apenas por um instante.

Fui assistir Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) sem ter ideia da longa duração do filme, mas intrigada pela mostra dedicada a Chantal Akerman que estava ocorrendo na Cinemateca Capitólio, na Rua Demétrio Ribeiro, 1085  Porto Alegre, decidi ir. Mal sabia eu que aquele seria o início de uma grande jornada entre mim, a cinefilia e o tempo.

Muitas vezes, os melhores filmes que vimos em nossas vidas não são aqueles que nos entregam o sentido que fomos buscar, nem aqueles dos quais saímos da sala saciados, pensando que nosso tempo foi bem gasto. São, na verdade, os filmes que nos apresentam um novo mundo antes inalcançável, os que viram nossa vida de cabeça para baixo e nos desestabilizam.

E foi exatamente isso que aconteceu comigo ao assistir ao que muitos consideram o melhor filme do mundo. Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles ocupa o primeiro lugar na lista dos melhores filmes da revista Sight and Sound, e assisti-lo na Cinemateca Capitólio deveria ter sido, em teoria, um momento memorável para qualquer cinéfilo porto-alegrense. Para mim não foi.

Chantal Akerman despertou dentro de mim uma revolução temporal e, como toda revolução, começa através de uma resistência. Eu, Milena, resisti durante os 202 minutos de todo o filme. Na sala de cinema, me senti em um cenário de tortura: amarrada na cadeira, com uma tela gigante me devorando, sendo obrigada a observar cada sequência da vida monótona de Jeanne Dielman. Aquilo, inicialmente, despertou em mim uma certa agitação, pois era exatamente o que eu buscava evitar em minha vida pessoal. Viver o tempo presente nunca foi fácil para mim, mas para Jeanne parecia algo natural. A tranquilidade na respiração da personagem e os planos longos pareciam ter sido feitos especialmente para provocar meu inferno pessoal.

Durante os 202 grandiosos minutos, mergulhei em meus sentimentos, nas minhas relações e na minha vida, e também nos sentimentos, relações e vida de Jeanne Dielman. O que nos tornava tão distantes? Aquilo era praticamente um espelho. Minha vida é tão simples e monótona quanto a dela, assim como a de qualquer um naquela sala de cinema.

Saí do filme ainda meio zonza, tentando entender por que aquilo tudo tinha me incomodado tanto.

A verdadeira explicação para todo o mal-estar me surgiu algum tempo depois. Na época em que assisti ao longa, Porto Alegre enfrentava uma temporada de fortes chuvas. Duas semanas após a exibição, uma tempestade atingiu a cidade e, em decorrência disso, fiquei exatamente 4.320 minutos sem energia elétrica. Com o passar das horas, a bateria do computador, do celular e das lanternas foi se esvaindo.

Ao longo do dia, a única fonte de luz que eu tinha, a solar, também ia chegando ao fim. As velas estavam reservadas apenas para momentos de extrema necessidade. E então, naquela penumbra crescente, me vi novamente naquela sala de cinema, com tempo suficiente para refletir sobre a vida. E me veio Jeanne Dielman.

Como uma bruxa, Jeanne Dielman retira o feitiço lançado em mim antes, feito dos meus próprios rituais calculados.

Lembrei-me das horas, minutos e segundos de sua rotina, todos preenchidos de forma metódica, como eu também costumava fazer, mas agora estava impedida por causa dos recorrentes eventos climáticos de Porto Alegre. Pensei então: o que aconteceria com Jeanne Dielman se uma simples queda de luz interrompesse sua vida? Isso abalaria a ordem de seu universo cronometrado? Ela se permitiria olhar para fora de seus enquadramentos claustrofóbicos? Como ela agiria se vivesse em uma cidade em que a vida é constantemente afetada por chuvas e alagamentos?

Com tudo isso borbulhando na minha mente, sentei-me em uma poltrona na sala de estar da minha casa. Os móveis e as paredes são cheios de cores amarelo, laranja, vermelho e verde, construindo um ambiente mais aberto. A cortina está escancarada, por onde entra a única fonte de iluminação de todo o cômodo. Consigo ver tudo o que passa na minha sala e também tudo o que acontece na rua, do lado de fora, através da janela.

Em seu documentário News from Home (1977), Chantal se muda para Nova York em busca de sua independência e libertação da mãe. Foi então que percebi uma associação quase cômica com as minhas escolhas de vida. A rua que eu observava da janela se chama Nova York e, paralelamente, eu também havia me mudado para lá em busca da minha autonomia.

Assim como uma estrangeira deslocada, eu observava atentamente aquela outra parte da cidade, ainda misteriosa para mim, através daquela mesma janela da sala de estar. Mas, dessa vez, todos os olhares e voltas me levavam a Chantal e a Jeanne Dielman.

Estática, voluntariamente igual a Jeanne Dielman, movendo apenas meus olhos e minha respiração, contemplo a liberdade que as pessoas que passam pela minha janela ocupam. Surge uma certa vergonha, em mim ou nelas, de que aquilo não deveria estar sendo visto por ninguém. O barulho e a agitação vindos da rua causam um certo conforto. Percebo que o silêncio não é necessário para descobrir um mundo antes inacessível.

Passo 202 minutos observando todo tipo de pessoa passar, cada uma cumprindo suas próprias sequências rotineiras, cronometradas e metódicas. Havia uma Jeanne Dielman em cada um deles, e agora também há uma em mim, a cada minuto que passa.

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