Crítica | A Bela da Tarde
É meio incrível percorrer a história do Cinema e ver que alguns filmes simplesmente não fizeram o alarde que deviam. Ou melhor, não sobreviveram o teste do tempo da forma que mereciam.
“A Bela da Tarde”, outra obra seminal de Luis Buñuel, me deixou pensando.
De certo modo é até fácil de conhecer o Cinema do diretor espanhol. Com uma abordagem que não foge da lógica de encenação novelesca que todos no Brasil conhecemos, seus filmes nesse período todos trazem uma mise-en-scène simples em sua composição, sem aspectos mega estilizados ou nuances “escondidas”, implorando para serem descobertas. Pelo contrário, a complexidade de seus filmes está na execução dessa simplicidade: de um diálogo a um beijo, cada novo acontecimento movimenta a narrativa e as jornadas particulares que cada um daqueles personagens percorre.
Na pele de Séverine Serizy, uma jovem mulher casada que decide satisfazer suas fantasias se tornando uma prostituta de luxo durante a tarde, Catherine Deneuve é uma criatura mais do que misteriosa. Falando apenas o necessário, preferindo se comunicar com expressões e reações, a atriz é a extensão lógica e emocional da abordagem de Buñuel: nunca entendemos realmente o que se passa em sua cabeça, suas ações falam por si.
Buñuel, que começou no Cinema com uma obra essencial do surrealismo e do experimentalismo no “Um Cão Andaluz”, aqui trabalha menos na forma e na estilização e mais na significação dos acontecimentos. Sonhando acordada, Séverine imagina situações absurdas que provocam as sensações que sua vida de casada - com um médico bom moço - não lhe proporciona, mas de nada as cenas diferenciam o que é real e o que é imaginado. Com um final ambíguo, talvez Buñuel abra espaço para uma interpretação abstrata de um filme que, em essência, é cruel em suas situações, mas carinhoso em seu julgamento. Ao menos, no julgamento da mulher, vítima de convenções sociais que a reprimem em todas as frontes, sendo que a corrupção da sociedade, em si, está sempre em pauta no Cinema do diretor. A cena no restaurante é mais abrasiva e impessoal para com ela do que seu primeiro encontro com um cliente, por exemplo. As camas separadas no quarto, e a paisagem morta onde caminha com o marido refletem o marasmo de sua vida casada, a qual ela tenta a toda maneira fazer valer apenas no amor.
Talvez este seja um dos poucos filmes que uma discussão acerca de seu final se torne válida. Se tudo não passou de uma fantasia, então a artificialidade provocada pela simplicidade das encenações surge mesmo como um devaneio, que toma contornos melancólicos por constatarmos que a única fuga é mesmo o sonho. Agora se os acontecimentos envolvendo o bordel são reais, então “A Bela da Tarde” é o menos surreal de todos os filmes que vi de Buñuel, se tornando uma história de decadência moral como resposta da ruína social em que nos encontramos. Ou talvez tudo seja apenas uma materialização dos desejos mais obscuros de uma mulher impedida de satisfazê-los sem que seja julgada no processo.