Crítica | Noites Alienígenas

CINEMA DE (QUASE) FUGA

Filme de Sérgio de Carvalho flerta com o fantástico, mas não se permite ir além


Um dos questionamentos de Walter Hugo Khouri em relação ao Cinema Novo - e que poderia ser estendido ao Cinema Marginal - era justamente a dificuldade destes filmes em se comunicar com as pessoas que filmava.

Meio século depois, e apesar de esforços de Khouri, Bressane, Ruy Guerra e outros, a vertente que mais influencia as produções brasileiras segue sendo a encabeçada por Glauber Rocha, tanto como referência imagética direta como vies teórico. Uns mais pra lá outros mais pra cá, boa parte dos filmes brasileiros que encontram relevância nesses últimos tantos anos não deixam de se assemelhar ao estereótipo (errado e sintomático) que muitos usam para diminuir nosso Cinema: representações da parcela subjugada da população e que, entre estéticas ou cosméticas, filmam a miséria.

Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho (cujos outros filmes não assisti, mas espero assistir em breve) ao menos sugere algo de diferente. Em seu belo nome, e na iconografia que faz permear sua história mais do que conhecida, da criança boa na cidade má, ele sugere um componente fantástico que pode elevar seus personagens para além dos arquétipos aos quais instantaneamente os conectamos. Algo que a primeira cena tenta fazer com um close de uma cobra metafórica a ponto de que a imagem se torne algo enigmático, mas que a segunda acerta ao focar nos rostos de sua dupla de protagonistas por alguns bons minutos, em um dos meus planos sequência favoritos de 2022/23. O virtuosismo por ele mesmo não interessa, mas sim uma proximidade criada com aqueles rostos que humaniza desde ali os objetos a serem estudados.

E então a câmera vira e vemos uma nave espacial em grafite, um passaporte para fora de uma vida já falhada, e que conversa diretamente com o filme brasileiro indicado ao Oscar em 2023, Marte Um (curiosamente, vi os dois filmes em dias seguidos, na Cinemateca de Porto Alegre). Não necessariamente no simbolismo fantástico, mas nos resquícios de liberdade humana que o filme se constrói. A cena do rap, o sexo na rua, o grafite. A câmera se posiciona atrás do guri, em uma espécie de gamificação da favela, um jogo de sobrevivência que se afunila, e onde os pequenos atos de expressão artística guardam qualquer tipo de esperança.

Carvalho usa muito bem uma encenação sugestiva, diálogos e conversas que podem ir para qualquer lado justamente por estarmos tão próximos da ação de cada cena. A câmera é na mão o suficiente para simular uma câmera-reportagem, sem nunca perder sua aptidão para extrair arte das situações que filma. Daí uma relação aparentemente cordial pode se tornar algo a mais, e a iminência de algo ruim acontecendo se intensifica quando entramos no jogo de gangues. A cena do Chico Díaz entrando no bar é um ótimo exemplo, mesmo que os outros atores não segurem a interação tão bem.

O que me traz de volta ao problema apresentado no começo do texto: a comunicação de Noites Alienígenas com aqueles que filma se dá mais de maneira isolada, no cena a cena, do que em uma construção que realmente permita uma assimilação mais direta do que acontece. Não chega a ser culpa do filme, mas imagino que estruturar o longa como algo ala Apichatpong seja sim um impeditivo. A ação nunca é “divertida”, o drama nunca é “evidente”, as relações nunca são “envolventes”. Por jogar demais com a iminência cena a cena, é um filme que certamente se torna desafiador para uma audiência mais casual.

Não que isso seja um problema! Embora tenha sentido o filme em certos momentos, agora escrevendo ele se costurou melhor na minha cabeça, embora minha principal reserva se mantenha. Se vai fazer o Apichatpong, porque não se jogar de cabeça? As luzes que brilham no céu, próximo ao fim, terem um fim em si mesmas é impedir um longa tão interessante e ambicioso de atingir todo o seu potencial. O gosto que fica, no entanto, não é mais do que aquele amargo moralista que, ao reproduzir “fielmente” a miséria, não se permite desafiar ela.

Talvez uma questão minha, mas ao não se alçar para os céus, Noites Alienígenas me fascina, mas não conquista.

7

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