Crítica | O Atalante (1934)

CINEMA À DERIVA

Clássico de Jean Vigo é um milagre da migração cinematográfica


Poder assistir um filme de 1934 na Cinemateca da sua cidade é uma experiência pra ficar na memória.

Um filme de 1934 já foi jovem, é claro, e no caso do único longa metragem do Francês Jean Vigo, antes de sua morte precoce aos 29 anos de idade, a sensação é ainda mais única.

A sobrevivência de O Atalante já é, por si só, um pequeno milagre. Para além de suas condições que o impediram de terminar as filmagens por completo, nenhum dos filmes completados por Vigo fez sucesso financeiro, e não fosse um relançamento mais de uma década depois, muito possivelmente a experiência que tive seria impossível. E aí entra a importância (chame de magia se quiser) do Cinema, a arte do registro, e da cinefilia, a condição de se apaixonar por ela.

O Atalante então voltou a vida como um dos grandes filmes da história, figurando em listas e mais listas, a ponto de ser reprisado em Porto Alegre, em 2023, em uma sessão com algumas senhorinhas que se divertiram com o brutamontes Michel Simon, e alguns jovens esquisitos que provavelmente choraram na cena do mar.

Revendo o filme mais de um ano depois, e com quase uma milha de filmes a mais na bagagem, acho que posso contextualizar melhor seu lugar no cânone dos anos 30, e também sintetizar melhor minha relação pessoal com uma obra já marcada em minha vida.


CINEMA À DERIVA

Os anos 30 foram, como qualquer outro combinado que tendemos a enumerar por década, cruciais para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica. O motivo, porém, é mais simples e generalista: o som.

Primeiro uma novidade que, para alguns teóricos, matou o Cinema, mas logo uma necessidade para qualquer artista que visasse se manter em uma indústria que engole tudo e recoloca na máquina de reprodução. O que não é tão uniforme, porém, é a maneira como diferentes países assimilaram este avanço.

Minha sensação é de que houveram, para ser econômico, quatro tipos de filmes nessa época (envolvendo a abordagem do som, especificamente), para além de suas qualidades: aqueles que falavam muito (A Grande Ilusão, M), aqueles que rejeitaram até o último instante (I Was Born, But…, The Water Magician), aqueles que entenderam (King Kong, Aconteceu Naquela Noite) e aqueles que pareciam presos em uma transição impossível.

Ao meu ver, O Atalante se encontra no último grupo.

Suas performances são expressionistas, mas seu jogo de câmeras permite liberdade demais para que atores virem e desvirem. Seus rostos não estão sempre em evidência, e a ação não parece ser feita para a câmera, ou confinada ao plano. Mas essa encenação mais livre, mesmo que dentro dos limites claustrofóbicos do pequeno navio, curiosamente poderia funcionar mesmo sem as piadas e as tentativas desajeitadas de dar sustância à premissa, por mais que estas não necessariamente pareçam estar sobrando.

Mesmo sua grande sequência, quando Jean (o ator) mergulha no mar porque acredita que será capaz de enxergar sua esposa, é uma maravilha remanescente dos anos 20. Poesia narrativa feita com imagens, mas que também só tem seu impacto possível porque entendemos - com palavras - o motivo. A sequência poderia funcionar isoladamente, mas o que é um risco proposital se tornaria possivelmente apenas uma tentativa de suicídio, seguida de uma visão espectral.

E por mais que estes elementos conversem de maneira interessante, hoje me parece que esse interesse acaba se relacionando com o fim precoce da carreira de Vigo, um diretor que jamais pode dominar a própria arte, e talvez justamente por conta dessa pequena amostra tenha caído nas graças de todos. É um Cinema ainda muito puro, muito cru, de alguém extremamente talentoso que nasceu em uma era difícil de se compreender artisticamente, e essa estranheza mais do que particular se adiciona aos méritos do filme em si.

Ainda um grande romance, e definitivamente um filme mais do que valioso por seu uso singular de uma linguagem em transição, mas O Atalante sobrevive tanto como Arte, como representação de um mito.

8

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