A Memória da Ditadura Militar no Cinema
1º de Abril de 2020 marca os 56 anos do golpe militar brasileiro. Esse trauma recente na história do país é motivo de intensos debates nas mais diversas esferas da sociedade brasileira. Há diversas maneiras de se relacionar com esses debates. Discutir sobre o passado e, especialmente, fazer isso na esfera pública, é uma maneira importante de entendermos o presente e pensarmos no futuro. Os processos de memória na sociedade brasileira, apesar de pouco efetivos nas políticas públicas, foram fortes no âmbito artístico. Filmes como “O Que é Isso Companheiro”, “Batismo de Sangue” e “Lucio Flavio, O Passageiro da Agonia”, ganharam destaque internacionalmente por tratar do período de 21 anos que durou a ditadora militar brasileira. Outro jeito de pensar nesse período, é a partir da histórias dos países vizinhos que passaram por ditadura militar no mesmo período (Argentina, Bolivia, Chile, Paraguai e Uruguai). Tiveram mais semelhanças ou diferenças entre as ditaduras desses países? Elas tinham relações institucionais? Qual papel os Estados Unidos tiveram nos golpes militares? As respostas para essas perguntas infelizmente nunca foram aceitas pela sociedade brasileira, e por mais que tenham sido feitas com muita força, em algum momento os questionadores foram perdendo a voz. Eu acho que esse debate não foi concluído. Por isso, nessa lista vou sugerir filmes sobre os eventos da ditadura brasileira e sobre a ditadura no resto da América Latina, para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça.
ESTADO DE SÍTIO (1972)
Esse clássico dirigido por Costa-Gavras é a melhor película sobre a articulação política existente entre as ditaduras latinas e os Estados Unidos. A história do filme parte do sequestro de um diplomata norte-americano pelos guerrilheiros tupamaros no Uruguai, essa situação articula a diplomacia brasileira para negociar com os militantes. A verdade sobre a missão do ianque no país começa a se revelar conforme ele vai sendo interrogado. A história da sua filmagem no Chile ainda contribui para o debate que propõem. Pois na época o país era governado pelo socialista Allende e as ditaduras militares na sua volta tentaram interromper a gravação, bem como os setores da sociedade chilena que depois dariam um golpe militar e dariam vida a sua própria ditadura.
HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA (2017)
Esse documentário analisa o cinema brasileiro durante o período da ditadura militar, a partir da constatação que o gênero mais popular da época, a porno chanchada, era de alguma maneira conivente com o regime de estado. A diretora Fernanda Pessoa passa por diversas cenas do audiovisual brasileiro das décadas de 1960 e 1970 para buscar onde estavam as críticas à ditadura militar e como elas eram feitas. O filme está disponível na Netflix.
UMA NOITE DE 12 ANOS (2018)
Cinebiografia uruguaia que conta a história do aprisionamento do ex-presidente do país, Pepe Mujica. Dirigido pelo aclamdo diretor uruguaio Alvaro Brechner e estrelado por Antonio de la Torre como Mujica, Chino Darin como Mauricio Rosencof e Alfonso Tort como Eleuterio Huidoro, o filme acompanha o cárcere dos três camaradas, que são movimentados, separados, unidos e reunidos durante os 12 anos presos. Isso é tratado de uma maneira bastante sensível e poética, um dos méritos do filme. E é inteligente para entendermos as relações e jogos de poder envolvidas na ditadura uruguaia. Também está na Netflix.
LEGALIDADE (2019)
Apesar de não se passar exatamente durante o período militar, esse filme dirigido por Zeca Britto contém excelentes reflexões sobre a preparação do golpe no Brasil. Contando a épica história da Campanha da Legalidade, em que o governador do RS, Leonel Brizola, impediu os militares de darem um golpe convocando a população para ir as ruas por uma rádio piratada no porão do Palácio Piratini. Último filme do ator Leonardo Machado, que interpreta o próprio Brizola, contando ainda com Cléo Pires, Fernado Alvez Pinto e José Henrique Ligabue no elenco, esses três últimos são os protagonistas do enredo, vivendo nos bastidores da Legalidade, contam boa parte das articulações em volta da campanha.
NO (2012)
Esse filme já tem outra perspectiva, ele conta a história da abertura democrática no Chile. Especificamente a história do plebiscito feito perguntando sobre a continuidade da ditadura. O protagonista da história é um plubicitário de esquerda, interpretado pelo incrível Gael Garcia Bernal, que promove uma campanha ousada pelo “Não”, resposta que daria fim ao regime na votação. O filme mostra a repressão dos militares contra seus opositores, a disputa na sociedade pela democracia e uma trama firme que o rendeu indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
CABRA MARCADO PARA MORRER (1984)
Em 1964, o documenetarista brasileiro Eduardo Coutinho vai ao interior da Paraíba filmar a história do líder camponês assassinado, João Pedro Teixeira. No dia 1º de Abril de 64 as gravações são interrompidas pelos militares, agora no poder. 17 anos depois, o diretor volta ao local. Misturando os depoimentos oringinais com as histórias dos seus depoentes o diretor remonta a história das Ligas Camponesas antes e durante a ditadura. Esse filme é um absoluto clássico do cinema nacional
“É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida
Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas a terra dada, não se abre a boca”
(Chico Buarque)
A HISTÓRIA OFICIAL (1985)
Uma das suas maiores forças é a capacidade de tratar de uma tema profundo imediatamente após o ocorrido. Foi muito comum nas ditaduras o tráfico de crianças filhos de militantes assassinados ou até a doação delas para a adoção. “A História Oficial” trata de maneira sensível sobre as diferentes formas pelas quais as ditaduras da América Latina impactaram a vida das pessoas. Durante a abertura política na Argentina, uma professora que até então não questionava sua realidade, começa a ter dúvida sobre a origem da sua filha adotiva. Na busca de Alicia por respostas, somos inseridos no debate sobre o quão profundo é o envolvimento da sociedade civil com o aparato repressivo. Lançado durante o próprio processo de redemocratização, o filme causou polêmicas com a Igreja Católica e os empresários argentinos, escancarando feridas que até hoje permanecem abertas. Vencedor do Oscar na categoria “Melhor Filme Estrangeiro”.*
O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS (2006)
Certamente um dois mais marcantes filmes sobre a ditadura militar brasileira. Dirigo por Cao Hamburguer baseado em sua experiência na infância. “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” é marcante justamente por trazer a visão dos refugiados através do olhar de uma criança, Mauro, filho de dois refugiados que fica com seu avô, pois seus pais temiam que os militares prenderiam seu filho com eles. Após a morte de seu avô, Mauro vai morar com Shlomo, um vizinho. O filme se passa durante a copa de 1970, em que o protagonista está especialmente envolvido, colecionando o álbum de figurinhas da Copa. O antagonismo entre a festa do título mundial e os refugiados, presos e torturados é um destaque do longa. O roteiro tem a mesma questão, é um filme que mistura a leveza da infância com o peso da ditadura militar, é bonito e ao mesmo tempo extremamente triste.
DESLEMBRO (2018)
Como pertencer a um país que matou e torturou nossos pais? Essa auto-ficção de Flávia Castro traz esse questionamento ao contar a história de Joana, adolescente que nasceu no Rio de Janeiro mas viveu a maioria da sua vida na França, após seu pai ter sido assassinado pela ditadura e sua família fugido do Brasil. Ao voltar para a cidade após a Lei de Anistia de 1970, Joana se vê obrigada a se confrontar com o país que a tirou o pai e a infância. Esses dilemas acontecem concomitantes com a adolescência, as novas experiências e a adaptação ao novo lar. O resgate da memória de Joana se confunde com a memória do próprio país, esse filme foi feito e lançado em um contexto de disputa da memória da ditadura militar e é um importante documento do seu tempo. O questionamento se mantém: Como pode existir um país que mata e tortura seus cidadãos e ninguém é responsabilizado?
ZUZU ANGEL (2006)
Um dos mais importantes filmes brasileiros. Dirigido por Sérgio Rezendo e estrelado por Patricia Pillar e Daniel de Oliveira, “Zuzu Angel” é um testemunho para as mães que nunca puderam enterrar seus filhos. A famosa estilista brasileira não seria afetada pela ditaura brasileira, se o seu filho Stuart não tivesse entrado em uma guerrilha de luta armada, para o desgosto de sua mãe. Após descobrir que Stuart fora torturado até a morte, Zuzu busca recuperar seu corpo, o que a torna uma figura desagradável para o poder. Há alguns filmes que mostram os porões da ditadura, a tortura e as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado, mas esse é com certeza um dos mais imactantes, por relacionar isso com a dor materna daqueles que passaram por isso.