Crítica | Legalidade
No dia 25 de agosto de 1961 o presidente Jânio Quadros renunciou à presidência da república alegando que forças terríveis haviam se levantado contra ele. Exatamente sete anos antes, outro presidente, Getúlio Vargas, se suicidava em pleno palácio presidencial também alegando que havia uma força terrível contra os interesses da nação brasileira. O Brasil do dos anos 1960 se inseria em um contexto de tensão global entre um mundo dividido por Estados Unidos e União Soviética. O capitalismo norte americano tinha dificuldade de entrar em um país que vivia o nacionalismo impulsionado pelo varguismo à população brasileira. A influência dos Estados Unidos sobre as forças armadas brasileiras era forte e consolidada e o alto escalão militar estava dividido entre a soberania nacional e o entreguismo aos norte americanos.
E é nesse contexto que se passa o filme “Legalidade”: os dias que se seguiram à renúncia de Jânio Quadros, a tentativa de golpe, a resistência da população e a posse de João Goulart. A narrativa é desenvolvida a partir da história dos jornalistas Tonho (José Ligabue) do Última Hora e Cecilia Ruiz (Cléo Pires) do Washington Post, que cobriam os dias de tensão no Palácio Piratini enquanto o governador Leonel Brizola (Leonardo Machado) armava a resistência que ficou conhecida como Campanha da Legalidade. Como não poderia deixar de ser, o centro do filme são as posições políticas de Brizola e Jango em relação às reformas e estatizações de empresas multinacionais e como isso poderia significar uma aproximação do Brasil com a União Soviética. Para o filme e de uma maneira geral essas posições não significaram uma tendência socialista do novo governo mas uma postura nacionalista e independente frente interesses internacionais. O fator usado pelos militares nos anos 1960 para justificar a aproximação ideológica de Jango com a URSS foram as relações Brasil-Cuba pregadas também por Jânio. Che Guevara naquele momento atuava informalmente como chanceler de Fidel Castro e rodava países do chamado terceiro mundo em uma tentativa de derrubar governos fantoches dos Estados Unidos e integrar nações do sul global. Nesse ponto o filme cria um personagem que simboliza essa relação: Luis Carlos (Fernando Pinto), que além de irmão de Tonho é ex membro da guerrilha de Sierra Maestra e amigo pessoal de Che Guevara e Leonel Brizola. Na história ele é símbolo da tentativa de integração latino americana que Cuba fazia no momento.
Esses três personagens fictícios: Cecilia, Tonho e Luiz Carlos (que também formam um triângulo amoroso) são uma boa estratégia para debater os interesses políticos em torno do golpe em João Goulart e da campanha da legalidade. Já nas primeiras cenas, por exemplo, Cecilia tenta entrevistar Brizola e as perguntas dela se relacionam as tentativas de estatização de posses ianques no Brasil. Luiz Carlos é antes citado por Tonho e seus amigos como um revolucionário para depois aparecer educando guaranis nas ruínas das missões jesuíticas e ainda mais além descobrimos sua relação com Che. No correr da História interesses internacionais não são normalmente escancarados, mas para a narrativa do cinema de reconstituição histórica é um recurso interessante. Além disso as atuações são coerentes com o tom, com destaque para Fernando Pinto e, muito especialmente, Leonardo Machado que encarnou Leonel Brizola trazendo, com fortes emoções, seus famosos chamados na Rádio Legalidade. A direção de Zeca Britto usa muito bem as locações do centro histórico porto-alegrense, em especial do Palácio Piratini para simbolizar as adversidades de Brizola e dos seus personagens durante os dias resistência ao golpe. Além disso, o filme explora recursos que criam rimas entre as cenas no Uruguai e no Brasil, dando harmonia temática para a narrativa refletida nos caminhos utilizados para representar visualmente a trama. São diversas ferramentas entre sequências de sonho, flashbacks, flashfowards que jogam o espectador para outros espaços temporais sem criar confusão nas histórias que estão sendo contadas.
O filme não tenta fazer uma revisão histórica e reafirma uma série de posições que nos últimos anos têm sido temas de debates vazios promovidos por aqueles que tentam justificar o injustificável e apagar a memória do país e da américa latina. O que faz é ilustrar de maneira bastante didática algumas questões. Como quando Neusa Goulart Brizola (irmã de Jango e esposa de Brizola) fala que o irmão dela é um fazendeiro da elite e não um socialista. Ou como mostra o apoio dos militares de baixa patente e da polícia militar à legalidade. São ações empregadas no filme para posicioná-lo diante de afirmações como: “o Brasil esteve perto do socialismo” ou “os militares salvaram o Brasil do socialismo”. É presente, durante todo o filme, a ideia da soberania nacional e da justiça social como o centro da política trabalhista das décadas de 1950 e 1960.