Blade Runner… 2019
Em 25 de Junho de 1982, Ridley Scott trazia a adaptação do livro de Philip K. Dick aos cinemas e tornava conhecida uma previsão velada feita por aquela história.
Novembro de 2019, dizia em um inter título.
Hoje, 37 anos depois, chegamos a esta data (sendo que o dia de novembro não é especificado) e é apenas lógico que façamos uma comparação com o mundo criado por Dick que, de acordo com o próprio (pouco antes de falecer, e antes do filme ser lançado, mas após ter assistido à uma prévia), fora trazido com exatidão para as telonas. Afinal, o quanto de “Blade Runner” realmente deixou de ser ficção?
Apenas assistindo ao filme pode não ficar claro. Não vivemos em um mundo pós apocalíptico, onde androides se disfarçam entre humanos para não serem assassinados e animais comuns como gatos e cachorros - ainda - não são um item de luxo. Os carros ainda não voam, ou flutuam, cabines telefônicas estão fossilizadas em algum lugar abaixo da Terra e, é claro, ainda não passamos da Lua. Nesse sentido, Dick e Scott parecem ter errado por quilômetros de distância, mas ao analisarmos o que estava por trás de toda aquela tecnologia vemos um retrato muito mais próximo de nossa realidade. Nosso mundo de hoje pode não ser tão escuro, tão evoluído, mas é inegável que o caos e a impessoalidade que vivemos fora anunciada em “Blade Runner”.
Se Deckard parecia, por vezes, um ser perdido na imensidão de singularidades daquela Los Angeles opressiva, hoje preferimos nos reclusar ao digital como forma de interação, não percebendo que, de certa forma, só estamos esperando pela tal inteligência artificial para finalmente nos isolar de outros humanos. Ponto este que K. adota na sequência, “Blade Runner 2049”, quase emulando o também fenomenal “Her”, de 2013. Hoje em 2019, continuamos procurando por algo que pode nos destruir, talvez por, justamente, nos sentirmos sozinhos ao acreditar que somos a única forma de vida inteligente por aí. É curioso apontar também como, naquele mundo, os animais foram extintos pela raça dominante e perceber como podemos estar caminhando para o mesmo destino por algo que nós mesmos iremos, um dia, criar.
Os ricos - ainda - não moram na Lua ou em Marte, mas faça um exercício e imagine como se sua cidade fosse virada de modo vertical, e observe a distância entre as residências dos mais afortunados com o resto destinado aos menos. Pode não ser necessário uma viagem espacial para trocar de região, mas os empecilhos sociais e econômicos figuram como um obstáculo muito maior para aqueles que sonham em, quem sabe um dia, mudar de vida. E se a sujeira daquele mundo, que fedia a poluição, não lhe lembra, ao menos em parte, nossas maiores cidades, é porque você deve morar no campo, onde a Atari existe apenas na memória, mas a Apple é mais presente nos bolsos do que nas árvores.
Uma reclamação constante tanto do filme original, quanto da continuação dirigida por Dennis Villeneuve, é a falta de autonomia e importância dada às mulheres na trama, em sua maioria androides, servas ou, até mesmo, namoradas por encomenda. Mas como o diretor canadense que, ao meu ver (e isso é assunto para outro texto), concebeu um longa ainda superior ao original, comentou: “Blade Runner 2049 não é o futuro, é o agora”. Esta declaração se mostra verdadeira na mesma medida que apavora todos aqueles que a destrincharem por completo. Em pleno 2019, ainda vivemos em uma sociedade machista, onde mulheres são constantemente subjugadas à vender seus corpos (e aí entram as personagens de Daryl Hannah, Joana Cassidy, Ana de Armas e Mackenzie Davis) e parecem reconhecer que não há outra maneira.
E repare como não apenas nesse, mas na grande maioria dos bons filmes de ficção científica, pessoas negras são praticamente deixadas de fora de papéis principais, constatando (talvez por acaso, é verdade) que nossa tendência é sempre repetir a história e, neste caso, voltar a acreditar que apenas os brancos devem estar no poder. Pois mesmo aqueles mais livres de preconceito, na hora que tiverem de dividir o seu pão, podem olhar para o lado e procurar traços semelhantes que o ajudem na escolha.
Mas a maior conexão entre o mundo imaginado por aquela obra, e o mundo que se sucedeu após ela, está na principal questão filosófica que a fez sobreviver ao teste do tempo: afinal, o que é ser humano? A resposta, que antes se encontrava perdida em meio à humanos e replicantes, agora serve como uma alegoria para nossa inerente busca por identidade, pois algo que a era digital definitivamente trouxe a tona é como, apesar de sermos únicos em um mar de diversidade, somos todos semelhantes em nossos desejos e anseios e, ao menos em algum momento na vida, nos fazemos a mesma pergunta que todo ser, real ou não, um dia se faz: afinal, o que eu sou? Neste sentido, não somos tão diferentes de Deckard, ou de Roy. Somos apenas mais um dentre tantos.